Uma boa conversa não tem hora para começar. Muito menos para acabar. Inicia-se ninguém sabe como, termina-se não se entende o porquê. E quando amigos de longa data se encontram, a prosa finaliza incompleta. É sempre um: “Mais tarde a gente papeia”. Cláudio, Marcos e Cícero conheceram-se no último ano do colegial. Tornaram-se amigos desde então. Casaram em épocas diferentes, mas com mulheres do mesmo círculo de amizade. Cláudio era o mais novo. Pai de três filhos e pedreiro. Marcos, pai de um menino, abriu um comércio atrás do outro. Encontrou sucesso vendendo casas. E Cícero, o mais velho e arruaceiro, recepcionista em um hospital. Não tinha filhos. Os três estavam sentados no lugar de sempre: a calçada da casa de Marcos. Era sexta-feira. A conversa estendia-se. O cafezinho transformou-se em janta. A visita em hospedagem. Lembravam dos velhos tempos de moleque, quando o que mais faziam era traquinagem. - Recordo-me da vez que seu pai aplicou-lhe uma dolorosa surra. Você quebrou a janela da casa do Seu Rivaldo... – ria Cláudio. Filhos e amigos dos filhos observavam atentamente. De cócoras, em pé ou sentados pelo chão da entrada, deixaram o futebol para saber do passado dos pais. - Sim, sim. Que surra! Meu pai, o senhor Raimundo, um velho bigodudo e muito sisudo, estava sentado em sua poltrona. Eu entrei de fininho. Era da idade de vocês: dez anos. Não sei como, mas ele sabia de toda a história antes mesmo de acontecer! – às gargalhadas. Ele perguntou e eu neguei. Que erro! Meninos, nunca mintam. Principalmente aos pais de vocês. Dói menos. Os meninos riram. Mas sabiam que era verdade. - Ele disse: “Vou sair e quando voltar quero uma resposta plausível”. Eu me perguntei: “O que é plausível?”. Antes de raciocinar uma nova desculpa, ele saiu, bateu a porta e abriu-a em seguida. Não deu outra. Caí no couro. Os meninos ficaram assustados. Os pais não eram tão agressivos, mas as chineladas e os castigos eram certos toda semana. Principalmente por desobediência. - E você, Claudio!? Conte para os meninos a semana de faxina em sua casa. Claudio riu ao lembrar. Coçou a cabeça e falou envergonhado. - Minha mãe havia acabado de limpar a casa. Eu tinha uns doze anos. Entrei com os sapatos melados de lama. Estava jogando bola e não reparei, porque estava preocupado com o joelho machucado. Meu pai saiu do banheiro e viu. Por uma semana ele me fez vestir o avental e ajudar a empregada a limpar o banheiro, varrer a casa e os pratos. Não pude sair nem para brincar na rua. E ainda tive de ler o jornal para ele todos os dias, milhares de vezes a mesma notícia. E todos conversavam e gargalhavam muito. Reconheciam que todas as disciplinas dos pais surtiram bons efeitos, contribuíram para a formação do caráter de cada um. O frio começou a bater. O sono também. E sempre ninguém saía sabendo da história mais marcante da vida de Cícero. Quando um dos meninos perguntou a ele. Tentou desconversar, mas a curiosidade tomou a todos. Cícero levantou da cadeira. Esticou as pernas. Sentou-se novamente. Bebeu um pouco de água. - Isso foi há uns quinze anos. Estava eu e minha irmã brincando. Meu pai chegou para nós e disse: “Amanhã é aniversário da mãe de vocês. Um rapaz vai trazer uma encomenda. Peçam para ele colocar na mesa. À noite eu escondo”. Continuamos a brincadeira. Duas, três horas depois, aparece um homem com um presente enorme. - O que era? – adianta-se um dos meninos. - Recebi, ele pôs na mesa. Minha irmã ficou curiosa. Eu mais ainda. Tateamos e não descobrimos o que poderia ser. Subi na cadeira e comecei a desatar o laço. Terminei e, não sei como, o presente caiu. - No chão? - Na mesa. Mas quebrou um pedaço. Levantei, fechei mal fechado e fui para o meu quarto estudar. Na época eu não era cristão, mas comecei a orar a Deus para que o meu pai derrubasse o presente antes de abrir. - Funcionou? - Quando ele chegou, viu a encomenda. Notou o laço e o embrulho desajustado. “Quem foi?”. O velho conhecia sua cria. “Quem foi o quê?”, perguntei. Ele me mandou calar a boca e ter mais respeito. A gente acaba esquecendo que nossos pais são autoridade sobre nossa vida. Foi instituído por Deus. - Mas e a surra? - Falou que iria tomar um banho. E precisava ter uma conversa comigo no quarto. Eu corri junto com minha irmã. Conversa no quarto era chinelada. Ele me procurou por dois dias. Eu escondido na casa de uma tia e minha irmã na de outra. - E quando encontrou? - Soube que não bateu em minha irmã. Ela ficou de castigo por um mês. Mesmo esquema de Claudio: lavar pratos, cozinha, banheiro, ficar sem televisão e sem ouvir rádio, sem sair de casa nem para comprar pão. - E você? - Comigo, nada. - Como assim? - Eu fugi de casa. Reencontrei com meu pai um ano depois.
Nota do Editor: Mateus dos Santos Modesto é jornalista. Veja também em www.mateusmodesto.com.br.
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