É acordado por um tropeçar em sua canela. A visão embaçada e os raios solares por alguns instantes o afugentam de visualizar o que está a acontecer ao seu redor. Logo tudo se reestabelece e o caminhar apressado diário das pessoas, como se o mundo estivesse acabando, continua o mesmo dos outros dias. A barriga faz ecoar um audível ronco. Fome. Beberica os dois últimos goles de uma cachaça amarga. O dia quente provoca o escorrer de suor dos cabelos, passando pela testa e chegando até o queixo. Olha para a sua direita e um jovem casal de namorados está se beijando apaixonadamente em uma esquina, como se por alguns segundos o mundo parasse e nada estivesse ocorrendo além daquele momento. “As paixões joviais me parecem mais intensas”, pensa em tom filosófico. Como não se apaixona por alguém há anos, mal sabe que o sentimento de paixão não tem idade, apesar de nutrir a esperança de casar com a Isis Valverde depois de ver uma foto dela em um jornal velho. Troca a direção do olhar para a esquerda e assiste uma mulher torcer o pé e cair. Duas meninas tiram fotos delas mesmas com o celular em meio ao vai e vem de pessoas. O vendedor de frutas da feira adiante anuncia que as bananas e as maçãs estão bem fresquinhas, como também estavam nos dias anteriores. Gosta de imaginar as profissões e atividades das pessoas em meio ao tumulto. “Aquele é carpinteiro... Aquela tem cara de quem faz bolo para fora... Dona de casa... Estudante... Trabalhador da indústria...”, e assim fica em seu exercício de imaginação para passar o tempo. A aproximação do Cachorro Júpiter e a lambida carinhosa o fazem acariciá-lo e olhar para frente e ser testemunha de mais um crime. A dupla de batedores de carteiras que atua na praça prepara-se para agir mais uma vez. Um senhor de cabeça branca e que caminha auxiliado com uma bengala é a vítima. A rapidez e a precisão garantem o êxito da ação. A dupla foge em direção a uma rua paralela, mas minutos depois já está de volta para fazer novas vítimas. Antes, porém, compraram duas pedrinhas de crack do traficante da outra ponta da praça e as fumaram em rápidas tragadas. Volta a olhar para a esquerda e um carregador passa empurrando com dificuldade uma carroça de mão lotada de água mineral e os motores a diesel dos ônibus que transitam pelo local vão deixando rastros negros de fumaça. Uma morena lindíssima caminha em meio à multidão e vai chamando a atenção dos homens devido aos arredondados glúteos. Uma criança chora sem parar sendo puxada pela mão pela mãe, enquanto outra deixa o bico cair no chão. Dois senhores discutem futebol, vestidos com as camisas dos seus rivais clubes. Um homem barbudo passa carregando uma bandeira de um partido político. Um jovem negro com fones de ouvidos embala a cabeça de um lado para outro, conforme a batida da música que está possivelmente escutando. Uma loira rói as unhas e outros tantos estão com olhos vidrados nas telas dos seus telefones enquanto aguardam na fila para embarcarem no transporte coletivo. Apesar da distância, consegue visualizar a sua amiga Nena vendendo rapadura em um semáforo. “Essa se vira para criar os cinco filhos”, reflete. Pensar na família da amiga o faz pegar uma antiga foto no bolso da calça. Contempla pela milésima vez o retrato desbotado pelo tempo. “Onde andará ela e o meu filho, meu Deus?”, indaga para si mesmo olhando “para o nada”, complementando em seguida o raciocínio com outros questionamentos: “Por culpa tua me tornei assim... Por que fugiste, Isadora? Por que fugiste? E logo com o Carlos? Por quê?”, perguntas que insiste em fazer para si mesmo há anos sem encontrar a resposta. O momento saudosista é interrompido pelo roncar novamente da barriga. Fome. Olha novamente para a multidão que segue transitando insanamente para um lado e para o outro. É hora de buscar comida ou achar algo para vender e fazer um dinheiro. Não pode ficar o dia inteiro observando as pessoas, já que o seu superpoder junto à sociedade não produz alimentos. Pelo contrário, o distancia da comida. Com dificuldade, levanta-se. O corpo dói depois da noite de sono no chão duro de pedra. Junta a sacola de plástico com as poucas roupas, assovia para o cachorro e parte para escrever mais páginas da sua história como mendigo...
Nota do Editor: Rodrigo Ramazzini é cronista.
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