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COLUNISTA
Rodrigo Ramazzini
21/07/2014 - 09h18
Heranças de um crime
 
 

– Perdeu! Perdeu! Assalto! Assalto! Coloca todo o dinheiro e as joias neste saco de lixo! Agora! Agora! – ordenou Roger a uma atendente.

O assalto à joalheira fora planejado durante um mês pela dupla de amigos, Roger e Marcelo, sendo executado pouco antes do meio-dia de uma quinta-feira. Era o primeiro crime cometido pelos dois, que não tinham qualquer passagem policial. Nascidos e criados em uma pequena cidade, distante cerca de 80 km da Capital, conheciam toda a sua movimentação e os melhores caminhos de fuga. A habilidade no manejo de armas, que trouxeram clandestinamente do Paraguai por meio de um amigo, fora adquirida durante o período em que serviram ao exército brasileiro. A preparação para o crime ainda contou com a aquisição de tocas ninjas e a confecção de “miguelitos” para tentar furar os pneus das viaturas policiais em caso de perseguição à moto, que era de propriedade de Marcelo. Também assistiram filmes que relatavam famosos crimes e ensaiaram passo a passo a ação, que pretendiam que fosse rápida.
Quando o relógio marcou 11h45min e uma vaga de estacionamento foi aberta exatamente em frente à joalheria, a dupla, que cuidava tudo a poucos metros, decidiu que era hora de executar o plano. Estacionaram a moto e, ainda com os capacetes, pularam para dentro do estabelecimento comercial, que contava com a presença, no momento, de duas atendentes e um cliente.

– Tu e tu! Para o chão! Chão! Ali! Ali! Quieta! Quieto! – comandou Marcelo para a outra atendente e o cliente.

Apesar de a execução estar saindo perfeitamente como o planejado, a dupla não escondia a tensão e o nervosismo na fala e no manejo das armas, principalmente, Marcelo, cuja mão direita tremia sem parar. E foi justamente esta mão direita que fez com que o crime começasse a dar errado. Enquanto a atendente colocava o dinheiro e as joias em um saco e a outra atendente e o cliente permaneciam deitados no chão, Roger ordenou que Marcelo desse uma averiguada na retaguarda da dupla. Ao se virar bruscamente, ele deixou cair a arma no chão, que estava sem qualquer tipo de travamento. Com isso, um disparo foi efetuado e atingiu um carro, no outro lado da rua, chamando a atenção de quem passava.

– Tá louco, cara! Tá louco! O que isso, velho? Junta essa merda de uma vez! E tu! Mais rápido com esse dinheiro, porra! – esbravejou Roger.

Marcelo juntou a arma. Minutos de tensão. A atendente, mesmo em pânico, terminou de colocar o dinheiro no saco. Quando a dupla saía da joalheira deparou-se com uma viatura da polícia, que fora acionada depois do disparo.

– Puta que pariu! Puta que pariu! Atira! Atira! Atira!

Bam! Bam! Bam! Bang! Bang! Boom! Bum!

A troca de tiros entre policiais e criminosos durou alguns minutos. Acuados, Marcelo e Roger decidiram retornar para a joalheira e fazer novamente as atendentes e o cliente de reféns.

– Fudeu, cara! Fudeu! O que a gente faz agora? – questionou Marcelo.
– Não sei! Não sei! Deixa eu pensar! Vamos negociar! – respondeu Roger.
– Eu não quero sair daqui morto, cara! – suplicou Marcelo.

Em poucos minutos, a rua da joalheria estava isolada e repleta de policiais. O comandante do policiamento da cidade também chegou ao local em pouco tempo. Tomou conhecimento da situação e teve a iniciativa de iniciar as negociações para a rendição dos criminosos e a liberação dos reféns. Ligou para o telefone da joalheria. Roger atendeu.

– Alô! Aqui é o Capitão Abreu. Vamos negociar?
– Bom dia, grande Capitão Abreu! Como vai o senhor?
– ...

Capitão Abreu ficou por um breve instante mudo ao telefone. Reconheceu a voz imediatamente. Era inconfundível para ele. Roger era seu filho mais velho. A relação entre eles nunca fora das melhores e tinha se agravado há seis meses, depois de uma discussão sobre a suposta informação de que Roger estaria envolvido com o tráfico de drogas. Informação plantada dentro do batalhão de polícia por um pretendente ao cargo do Capitão, com o objetivo de desestabilizá-lo. Desde então, nunca mais haviam se falado.

– Por que, Roger?
– Agora, realmente, eu sou um criminoso, Capitão Abreu!
– Isso é vingança contra mim, Roger?
– Pois é, Capitão Abreu! Pois é... 
– Já pensaste o que estás fazendo da tua vida?
– Ainda não! Por isso, só começo a negociar daqui a uma hora...

Roger encerrou a ligação. O sentimento de desilusão tomou conta de Capitão Abreu, porém não poderia demonstrá-lo aos comandados. Foi então que surgiu a dúvida: “contar ou não contar que um dos assaltantes era seu filho?”. Enquanto pensava no dilema, encontrou uma saída momentânea para manter sob o seu controle a situação.

– Pessoal! Todos aqui. Ele me disse ao telefone que só começa a negociar daqui a uma hora e que a negociação deve ser conduzida exclusivamente por mim. Ok? 

A dúvida que atormentava ao Capitão e a busca para encontrar uma razão para aquele ato extremo de Roger o fez com que se esquecesse dos detalhes. Assim, em meio ao tempo pedido por Roger para iniciar as negociações, a imprensa e o reforço de grupo antissequestro da Capital estavam no local, o que só agravava-lhe o contexto.
Dentro da joalheria, os reféns tiveram mãos e pés amarrados e serviam de “escudo humano”. Nervoso, Roger suava frio e balançava o pé direito em busca de uma solução. Já Marcelo estava tomado pelo desespero, chorando incessantemente e dizendo:

– Eu não quero ser preso, cara! Eu não quero morrer! Eu não quero morrer! Pelo amor de Deus, tira a gente daqui! Eu não quero ser preso! Eu não quero ser preso!

O ambiente tenso predominava no local. Do lado de fora da joalheria, policiais se posicionavam em caso de necessidade de invasão. Já dentro, Marcelo ficava cada vez mais em pânico. O fato ganhara notoriedade nacional. Faltavam cinco minutos para que o contato com os assaltantes fosse restabelecido, conforme combinado com Roger. Assim, Capitão Abreu resolveu contar a seus superiores que um dos criminosos era seu filho. Foi então que, enquanto fazia isso, em uma reuniãozinha afastada dos demais policiais, um ruído seco de um disparo ecoou de dentro da joalheria:

– Bam!

Marcelo não aguentara a pressão e atirara contra a própria cabeça. Sem saberem a origem do tiro, a reação policial foi rápida e a invasão ao estabelecimento comercial demorou poucos segundos. Houve troca de tiros. Um policial ficou ferido no braço. O cliente tomou um tiro de raspão no ombro. As duas atendentes saíram ilesas. Roger foi quem mais sofreu, levando uma série de tiros na região abdominal. Ele foi socorrido desmaiado e levado para o hospital. Entre os policiais, começava a discussão para saber quem havia dado a ordem de reagir daquela forma.


Dois dias depois. No hospital.

Acompanhado da esposa e outros familiares, Capitão Abreu aguardava o resultado da avaliação da junta médica sobre o estado de Roger, que permanecia inconsciente. Em silêncio, caminhava de um lado para outro na sala de espera. Uma eclosão de sentimentos que variava de raiva a arrependimento o deixava perturbado. Ainda não havia compreendido toda a situação. Eis então que surgiu o médico com a notícia.

– Como vocês bem sabem, o Roger passou por uma série de procedimentos cirúrgicos nos últimos dias. Conseguimos retirar todas as balas do corpo dele. Entretanto, a maioria dos tiros atingiu os dois rins, comprometendo as suas funcionalidades. Pelo quadro clínico dele, que é grave, porém estável, o mais indicado neste momento é um transplante. Vamos ter que procurar um doador!

O diagnóstico médico deixara todos estarrecidos. A mobilização em busca do doador iniciava dentro do próprio hospital e as primeiras ações estavam sendo idealizadas, quando Capitão Abreu surpreendeu a todos e declarou:

– Eu serei o doador! Doarei um rim para o Roger!

Todos sabiam o que ele estava passando e que o ato de Roger fora uma vingança. Entretanto, o ódio não foi capaz de superar o sentimento de amor paterno e a capacidade de perdão do ser humano. Capitão Abreu se submeteu a todos os exames necessários para a realização do procedimento e o resultado apontou que ele era compatível. Um sentimento de “leveza” apoderou-se de Capitão Abreu, que sentia uma nova era na convivência com o filho iniciar e que os erros do passado dos dois seriam deixados para trás.

Transplante.

A parada cardíaca aconteceu logo no início do procedimento cirúrgico. Durante quase duas horas os médicos tentaram reanimar Capitão Abreu, que não resistiu e faleceu. Com a sua morte, mesmo sendo pegos de surpresa e em estado de choque, os familiares acataram a sugestão médica e autorizaram que um rim fosse doado a Roger e o outro a um paciente que estava na fila de espera há dois anos. Assim, como os demais órgãos.
O transplante foi realizado com sucesso e o corpo de Roger aceitou bem o novo rim. Depois de três meses, ele saiu do hospital e foi direto para a cadeia.

Cemitério.

Condenado a nove meses de reclusão no regime fechado após a tentativa de assalto, hoje, é o primeiro dia em que Roger saiu da prisão para continuar a cumprir a sua pena de mais dois anos no regime condicional. Deixou o presídio e foi direto ao cemitério, onde estão enterrados os corpos do amigo Marcelo e do Capitão Abreu.
Lá, ao ver os túmulos tão próximo um do outro, começou a chorar. Enfim, sentiu que a sua ação motivada pelo desejo de vingança ao pai o condenara a carregar o sentimento de culpa pelo resto da vida... 


Nota do Editor: Rodrigo Ramazzini é cronista.
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