| Marco Fraga | | | | |
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Assim que a velha teve o piripaque fatal que a levou dessa para outras e mais interessantes esferas, veio vindo à tona aquele amontoado de estranhas coisas, denunciando que a sua notória avareza era mais grave do que se supunha. Além do estrito controle com a economia doméstica, que a tornou folclórica na vila, descobriu-se que Dona Anacleta Miguelina Ribeiro não se desfazia de nada - ainda que esse nada fossem despojos, utensílios gastos e embalagens vazias. Milhares de tubos de pasta de dente esvaziados até o último milímetro, encaracolados de tão retorcidos, como se uma morsa os tivesse espremido. Mechas de cabelo cortados – provavelmente todas as mechas de todas as vezes em que esteve no cabeleireiro, separadas em sacos de lixo de 120 litros e organizados por anos. Os cabelos ainda castanhos em 1939, grisalhos de 1961 a 1974, branco-lilases de tintura dos anos 80 em diante. Um pote de dois litros de sorvete Yopa guardava o que o esparadrapo na tampa identificava como “Unhas roídas”, enquanto um cartucho de Pringles continha as denominadas “Folhas secas de quaresmeiras, recolhidas próximas às mesmas no outono de 1978”. No criado-mudo, uma latinha oval de pastilhas para garganta há pelo menos sete décadas era o depósito dos dentes de leite e os do siso da recém-saudosa Anacleta, aquela que nada jogava fora. Nem mesmo conversa, pois era por natureza quase muda. O que parecia ser um cubículo de despejo, abaixo da escadaria do casarão, estava abarrotado de zíperes emperrados, botões de camisa partidos ao meio, meias com furos nos calcanhares e algumas centenas de caroços de manga chupados. Palitos de dente usados jaziam simetricamente alinhados embaixo do divã da sala de estar. E havia mais, muito mais. Cotonetes melecados de cerume, depositados num baú de vime em meio a retroses e agulhas de tricô. Tocos de vela aos montes, cordões umbilicais de todos os porcos paridos na propriedade, restos de sabonete, latas enferrujadas de ervilha e massa de tomate, canetas esferográficas secas de tinta e com as tampas mordidas. Seco também encontraram o poço artesiano, mas não vazio. Ali se amontoavam válvulas de rádio e lâmpadas queimadas, misturadas a maços de cigarro amassados – cujas marcas iam rejuvenescendo à medida em que se aproximavam da boca do poço – Fulgor, Chesterfield, Kent, Continental sem filtro, Minister, Hollywood, Free e Dunhill, pela ordem cronológica. Apontamentos encontrados numa gaveta da cômoda mostravam, dentre outras coisas, um duto de razoável diâmetro que ligava a fossa séptica da propriedade à horta, para que se aproveitasse o “conteúdo” como adubo para a alface tenra que servia à mesa. Encontraram o corpo onde quase sempre se esparramava a maior parte do dia, a assistir televisão. Foi sentindo a vida esvaziar de si, sem revolta ou desespero, deixando apenas o invólucro seco e gasto. Mas antes rabiscou um bilhete, pedindo que não a jogassem fora no grande lixão dos mortos.
Nota do Editor: Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário em Campinas (SP), beatlemaníaco empedernido e adora livros e filmes que tratem sobre viagens no tempo. É colaborador do jornal O Municipio, de São João da Boa Vista, e tem coluna em diversas revistas eletrônicas.
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