Os garis de Copacabana não divisarão nenhum navio no horizonte, nem horizonte que recicle o lixo de suas vidas. A enfermeira de plantão lerá “As Intermitências da Morte” e acabará morrendo de tédio ao virar a página 153. Na sala ao lado, a caneta do médico falhará quando estiver prescrevendo Viagra ao paciente. O velho Hermógenes do 302 irá cortar o cabelo, a barba, o bigode, a carne, o iogurte, os remédios e o talco para chulé porque a aposentadoria não vai dar pra tudo isso. Os milhares de japonesinhos que nascerem prematuros terão os olhos mais puxados para as mães que para os pais, e todos eles dominarão os recursos do novo Playstation antes de completarem dois anos. O carteiro receberá uma carta apaixonada, mas a remetente não será correspondida. O vestibulando fará teste vocacional e descobrirá que não presta pra nada. O juiz da nonagésima vara sairá mais cedo pra pescar. A reforma agrária ganhará terreno e deixará os latifúndios em estado de sítio. Um relojoeiro da Região Metropolitana de São Paulo irá bater com as dez, um verdureiro de Mairiporã irá pro vinagre, alguma Inês será morta e uma doceira será cremada. O leiteiro flagrará a esposa dando de mamar para o encanador. A vendedora de panelas se casará com um cabo e ganharão de presente um conjunto inox de meia-tigela. Sem ter por que e com quem lutar, o almirante de esquadra dispensará as tropas e passará a Playboy em revista. O jornalista preservará suas fontes, mas investigará a fundo a greve dos chafarizes. Um padre de vocação vacilante largará a batina por culpa de uma fiel demasiadamente carismática. O serial killer deixará digitais no Cereal Kellogg’s. O campeão de xadrez receberá como prêmio um xeque sem fundos. Os donos de livrarias venderão poucos exemplares de auto-ajuda, mas terão um bom retorno sobre “O Capital”. A vaca Mocha irá ruminar a dor de ver seu bezerro acompanhado de alface, queijo, molho especial, cebola e picles no pão com gergelim. Enquanto isso, as fábricas de mortadela abocanharão novas fatias de mercado. O clarinetista errará a nota ao acertar as contas com a prostituta. E a prostituta, por sua vez, continuará ganhando a vida amando o próximo. Tire o cavalo da chuva: o Coelho, peixinho do chefe, será promovido a leão de chácara antes do cantar do galo. O secretário da receita passará a chefe de cozinha, por ordem expressa do cerimonial da presidência. O estado do aparelho de som passará de agudo para grave, se continuar a tocar os greatest hits de Chrystian e Ralf. A bala perdida será encontrada no bolso do blazer do guarda Belo. Encostado à parede, o costureiro entregará os pontos. A praga daquele pestinha infestará todas as outras crianças do bairro. As mulheres mexicanas, para tornarem calientes seus casamentos, encherão de pimenta os tacos do quarto. Agrônomos desenvolverão versões transgênicas da batata da perna, da planta do pé, da palma da mão e da flor da pele. Os projetos sairão finalmente do papel: uma borracha irá apagá-los impiedosamente. O referido papel será jogado às traças. Desprezado pelas traças, será lançado ao lixo, que será recolhido pelos garis de Copacabana. Esta é uma obra de ficção.
Nota do Editor: Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário em Campinas (SP), beatlemaníaco empedernido e adora livros e filmes que tratem sobre viagens no tempo. É colaborador do jornal O Municipio, de São João da Boa Vista, e tem coluna em diversas revistas eletrônicas.
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