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COLUNISTA
Celamar Maione
15/03/2010 - 13h04
O chuveiro
 
 

Noite quente de sexta-feira. Deuzenira desceu do ônibus cansada, depois de mais um expediente puxado. Vinha pensativa pela rua, olhando com inveja para os bares lotados de gente sorrindo com copos de cerveja na mão, quando encontrou Lucimara. A vizinha vestia um tomara que caia preto e sandálias de salto alto prateadas e descia a rua cantarolando. Com voz invejosa, Deuzenira perguntou:
- Nossa, aonde você vai vestida assim?
- Ao aniversário de uma amiga. Quer ir também?
- Não. Tô cansada. Trabalhei muito. Quero tomar um banho e cama.
- Depois reclama que não arruma namorado. Também. É de casa para o trabalho, do trabalho para a casa.

Deuzenira deu um sorrisinho amarelo e seguiu pela rua com os ombros caídos. Enquanto se aproximava de casa, pensava na vida. Tinha vontade de ir às festas. Mas se achava muito sem graça. Geralmente quando resolvia sair de casa para dançar, esquentava cadeira tomando conta da bolsa das amigas, enquanto elas se rebolavam na pista, parecendo peixe se movendo no aquário.

Colocou a chave na porta, e o telefone tocou. Correu para atender. Era uma mulher com voz impostada querendo lhe vender um cartão de crédito. Não estava com paciência. Desligou e nada respondeu. O telefone tocou novamente. Assim que disse alô a mesma voz impostada de vendedora de telemarketing a agrediu:
- Podia ao menos ser bem educada, sua piranha, estou trabalhando.

A mulher do telemarketing desligou antes que Deuzenira reagisse. Resmungando tirou o telefone do gancho e foi preparar alguma coisa para comer. Olhou a geladeira, tirou o queijo branco e deixou ao lado do saco de pão de forma, em cima da mesa da cozinha. Encalorada, resolveu tomar um banho antes de lanchar.

Entrou no banheiro, e ligou o chuveiro. Nada de sair água. Interfonou para a portaria:
- Seu Jorge, porque o senhor não me avisou que ia cortar a água do prédio?
- A água do prédio tá cortada não senhora.
- Meu chuveiro não tá funcionando.
- Então seu chuveiro escangalhou.
- E como é que eu vou tomar banho?
- Sei não senhora.
- O senhor pode vir aqui dá uma olhada pra mim?
- Posso sair da portaria agora não. Só quando o Sebastião chegar.
- E que horas o Sebastião vai chegar?
- Ele me rende às dez.
- Então dez horas estou lhe esperando no meu apartamento pra consertar o chuveiro.

Desligou o interfone e mordeu os lábios de raiva. O estômago de Deuzenira começou a dar voltas, a fome apertou e ela comeu o sanduíche quase se engasgando, enquanto via novela. Colocou o telefone no gancho. Cinco minutos depois, ele tocou. Denzenira olhou para o teto e gritou:
- Puta que pariu! Será que eu não tenho paz? Espero que não seja a mulher do telemarketing.

Era a mãe. Deuzenira contou que estava morrendo de calor e não tinha como tomar banho.
- Vem tomar banho aqui em casa.
- Sair de casa a essa hora, pegar um ônibus para ir até sua casa tomar banho? Prefiro dormir fedendo.
- Então pega um balde, enche no tanque e se refresca!
- Vou esperar o porteiro. Ele disse que ia consertar o chuveiro.

A campainha tocou.
- Mãe, deixa eu atender que deve ser o Seu Jorge.

Abriu a porta. O porteiro lhe sorria simpático, com uma caixinha de ferramentas nas mãos. Convidado a entrar, comentou:
- Sabe quem morreu hoje?
- Não faço a menor ideia.
- Seu Onofre do 402.
- É mesmo? Mas o coitado também estava com câncer há uns dois anos.

Seu Jorge entrou no banheiro, mexeu no chuveiro, e com ares de quem entendia do assunto, decretou:
- O serviço vai demorar. Melhor deixar pra amanhã.
- Nunca, Seu Jorge. Se o senhor consertar hoje, dou-lhe um dinheiro extra. Preciso tomar banho. Tô morrendo de calor.
- Bom, então eu preciso desligar o disjuntor, dona Deuzenira.

Enquanto o porteiro consertava o chuveiro, Deuzenira foi até o quarto e ficou apenas de calcinha e sutiã. Andava pela casa se abanando:
- Ai, que calor! Doida por um banho. Vai demorar muito Seu Jorge?
- Não. Só mais um pouquinho!

Deuzenira comemorou ao escutar o barulho de água saindo do chuveiro. “Vou tomar aquele banho, e melhor – pensou – acompanhada” Correu até o banheiro e quando Seu Jorge saía do box, distraído, empurrou-o para debaixo do chuveiro ligado:
- Seu Jorge, olha o que eu fiz! Desculpe, foi sem querer.

Com a roupa molhada, Seu Jorge tentava disfarçar o constrangimento:
- Tem problema, não. Eu vou pra casa agora e me troco.
- Não. Quê isso. O Senhor vai pegar uma pneumonia.

Ele ainda tentou se livrar do assédio da moradora:
- Tenho que voltar pro quartinho. Esqueci minha televisão ligada.

Com jeitinho, Deuzenira convenceu-o a tirar a roupa. Assim que o porteiro ficou nu, ela se surpreendeu com as pernas grossas de Seu Jorge e o empurrou para debaixo do chuveiro:
- É pra ficar limpinho!
- Dona Deuzenira, isso não vai dar certo.
- E não é para dar mesmo.

Depois de tomarem um banho gelado, Deuzenira o carregou para a cama, puxando-o ofegante pelo braço. Pela manhã, depois de se espreguiçar na cama confortável, Seu Jorge se levantou fazendo alongamento, como de costume. Acordou Denzenira, sem querer.
- Desculpe. Não queria acordar a senhora. Tenho que ir pra portaria. Se a síndica passar por lá e não me encontrar, me demite.
- Vai, mais volta de noite. Tem uma carrapeta na pia da cozinha pra você trocar.

Tímido, Seu Jorge saiu prometendo voltar. Quando ela trancou a porta, olhou-se no espelho da sala e sorrindo disse baixinho: “Quando eu podia imaginar que a felicidade estava num chuveiro escangalhado?“


Nota do Editor: Celamar Maione é radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador, mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.
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