Quando Rafael fechou a porta, a velha sensação de fracasso tomou conta de mim. Estava sozinha novamente. Pensei: “o que Rafael havia me acrescentado nos 4 anos de relacionamento?” Me magoava com desconfianças e humilhações. Implicava por pequenas coisas... muitas vezes, depois de pintar os cabelos no salão, quando chegava em casa, ao invés de elogios, era recebida com deboche: - Gastando dinheiro com besteira? Você nunca vai ficar bonita... só se fizer plástica! As agressões de Rafael me deixavam paralisada. Lembrava da minha infância na Baixada Fluminense, quando brincava nas ruas enlameadas de Caxias, de pés descalços e vestido de chita. Meu pai chegava bêbado, tropeçando nas pernas. Quando me via rindo com outras crianças, me pegava pelo braço e me empurrava para dentro de casa: - Vadia, é isso o que você é. Gisele: a exibidinha. Vai esquentar minha janta que sua mãe ainda não chegou do trabalho e eu estou morto de fome! Lá ia eu, de cabeça baixa, ombros caídos e descalça, fazer o que papai queria. Esquentava a comida, com lágrimas caindo pelos meus olhos pequenos e entristecidos. Antes de servir o jantar, limpava meu rosto magro molhado pelo choro, com um pano de prato. Colocava a mesa sem dizer uma palavra. Meu pai comia feito um bicho. Pedia mais. Era insaciável. Depois, enquanto eu lavava a louça, ele puxava meu vestido e me acariciava por cima da calcinha. Sentia uma mistura de nojo e prazer. Me tornei adolescente, tomei corpo e nunca falei para minha mãe dos momentos íntimos com meu pai. Se eu contasse, não ganharia balas. Quando me tornei adolescente, papai me dava dinheiro. Em troca, eu o acariciava. Tinha verdadeira repulsa. Mas precisava da grana para comprar cigarros e bijuterias. A cada trepada, eu ia para o banheiro, ligava o chuveiro e deixava a água fria banhar meu corpo curvilíneo. Tinha ânsia de vômito quando lembrava do pescoço azedo de papai perto da minha boca. Minha vida mudou quando completei 18 anos. Eu, meu pai e minha mãe jantávamos na sala. Como sempre, papai falava alto e gesticulava muito. A comida escorria pelo canto da boca se misturando à saliva. Numa fração de segundos ficou vermelho... tombou da cadeira, caiu no chão e colocou a mão no pescoço. Queria buscar fôlego e não conseguia. A língua arroxeada caiu pelo canto da boca. Me esticou uma das mãos pedindo socorro. Mamãe ficou impassível. Tentei fazer alguma coisa. Me abaixei, sacudi, gritava num misto de medo, desespero e alegria: - Papai... pára de brincadeira!? Levanta daí... Morreu. Envenenado. Duas semanas depois, eu e minha mãe assistíamos televisão quando a polícia prendeu mamãe. Ela saiu algemada de casa. Chorei convulsivamente. Fui morar na zona norte na casa do irmão de minha mãe e da esposa dele. Eles não tinham filhos. Só então tive uma vida igual à das moças da minha idade. Festinhas, namoros e estudo. Meu tio pagou meu curso de Nutrição. Aparentemente sou feliz. Dentro de mim, porém, um buraco negro de dias torturantes me acompanha sempre. Lembro das cenas de sexo com meu pai. Da agonia da morte. Das algemas lustradas nos pulsos de mamãe. Cada relacionamento que acaba, as recordações voltam à minha mente. Vejo papai na minha frente, com dedo em riste, bronqueando comigo: - Você ainda é a minha vadia. A minha Gisele exibidinha! Outro dia recomendava uma dieta para uma cliente obesa. E ela reclamava do marido: - Depois que engordei meu marido arranjou uma amante. Me despreza. Mas não tem coragem de se separar. O dinheiro é meu... se ele pede a separação fica pobre... então cheguei para ele e disse: ou fode comigo ou não tem mais dinheiro! Me contou essa história escrota e depois ainda fez cara de poderosa. Levantou as sobrancelhas e começou a rir. Fiquei com raiva da gorda. Lembrei que tinha nojo de meu pai, mas transava para receber balas e dinheiro. Encaminhei a gorda para um colega de profissão. Quando penso nessa anta filha da puta e chantagista, me dá asco. O problema é que, apesar das relações conturbadas lembrarem meu pai, só me relacionei com homens problemáticos. O primeiro homem com quem vivi era viciado em drogas. Me batia, me chamava de vagabunda e roubava meu dinheiro para comprar cocaína. Me livrei dele quando foi assassinado. Chorei a morte do desgraçado. Porém, logo esqueci meus dias de calvário. Meus sofrimentos sempre foram descartáveis. Assim como as pessoas. Vivi com meu segundo amante um ano apenas. Eu o conheci na fila da padaria. Comprávamos pão no mesmo horário. Era mecânico perto da minha casa. Aquela mão suja de graxa me excitava. No dia que me deu o cartão da oficina onde trabalhava, fiquei mal intencionada. Dois dias depois levei o carro para revisão. Em uma semana, o mecânico se deitou na minha cama e entrou na minha vida. No início era dócil. Me enlouquecia de prazer. O cheiro de fumo lembrava meu pai. Os dois misturavam água de colônia com cheiro de cigarro. Eu me envergonhava de apresentá-lo às minhas amigas. Ele me cobrou: - Só por que não tenho canudo você não me apresenta às suas amigas? Fresca. Convencida. Babaca! Quando me agrediu fisicamente dei parte à polícia. Me mudei. Nunca soube o que aconteceu depois. Não apareci na delegacia e nem vi mais o mecânico. Senti falta do sexo gostoso quando o abandonei. Mas se eu não tomasse uma atitude, um dia ele me matava. Foi o melhor homem que tive na cama. Meu terceiro amante, antes do Rafael, foi o mais velho de todos. Fisicamente era parecido com meu pai. Tinha um olhar petulante, as sobrancelhas grossas e os lábios bem vermelhos. Era gerente de banco. Me decepcionei quando um dia cheguei em casa e o peguei na cama com o caixa. Expulsei-o da minha casa com as calças na mão. Me senti um barco naufragado. Na profissão meus clientes são compulsivos e querem dietas milagrosas. Bando de ansiosos depravados! Na vida sentimental não me acerto com ninguém. Meu passado me persegue. O cheiro de azedo de meu pai. Ele caindo da cadeira e se debatendo. Minha mãe algemada. Eu preciso de um psicólogo. Urgente! Quero sair de mim. Pensei que Rafael pudesse me transformar. Quando o conheci era bem-humorado e fazia piada de tudo. Aprendi a rir com o Rafa. Ria de fazer cócegas no esôfago. Menos de um ano e já morávamos juntos. Durante um tempo fomos felizes. Embora debochasse das minhas roupas discretas e sem graça. Só que das roupas, passou a implicar com as amigas. Me descartei de todas. Desconfiava dos meus clientes obesos. E quando eu não queria foder, se masturbava na minha frente. Isso me lembrava papai quando pedia que eu o masturbasse. Acabava de masturbá-lo, corria para o banheiro e lavava as mãos durante 10 minutos. Às vezes mamãe chegava do trabalho e me via no banheiro me lavando. Impaciente gritava para papai: - Que porra essa menina tem que tanto lava as mãos? Vou levar essa garota ao médico. Ela é muito esquisita. As semelhanças entre papai e Rafa aumentaram. As agressões verbais viraram rotina. Optamos pela separação. Ele já tinha outra: - Tenho outra sim e trepa muito melhor do que você! Novamente o buraco negro. A porta bateu. Ele partiu. Não volta mais. Sempre foi assim. O cheiro de azedo. Papai se debatendo... mamãe algemada... Corri para o quarto, abri meu armário e peguei com as duas mãos minha caixinha mágica. Depois deitei na cama e me encolhi toda. Fiquei admirando a caixinha de madeira, de fios dourados nas laterais, pintada com uma rosa no meio e cadeado prateado. Ganhei a caixinha de mamãe quando tinha 8 anos. Ela disse que eu a guardasse e quando estivesse triste, abrisse. Nela encontraria a felicidade. Nunca abri a caixinha. Quando Rafael fazia as malas para ir embora, ligaram do presídio para avisar da morte de mamãe. Uma saudade do que ainda estava por vir me invadiu. Com cuidado, coloquei a chave no cadeado, rodei e abri a caixinha. Não tinha nada. Lágrimas de emoção escorreram pela minha face. Pela primeira vez entendi o que mamãe quis me dizer.
Nota do Editor: Celamar Maione é radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador, mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.
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