Parte I
Aparecida acordou com imensa angústia no peito. Chamou o marido para trabalhar e preparou o café. Enquanto colocava a mesa, a angústia voltou. Sentiu uma vontade inexplicável de chorar. Sentou-se à mesa, cortou o pão, passou manteiga e assim que Juarez deu o primeiro gole no café com leite, Aparecida desabafou: - Acordei tão estranha hoje. Com uma dor no peito. - Como assim? Ta passando mal? - Tô com um aperto no peito. Um mau pressentimento. - Pressentimento? - Aposta que não duro até o meu aniversário? - Mas seu aniversário é daqui a um mês. - Morro antes. - Besteira. Vou deixar o dinheiro para você pagar o bolo antecipado. Aparecida apertou a boca em sinal de desânimo. O marido saiu gritando que os quarenta reais estavam em cima da mesa da sala. Ela nem agradeceu. Durante o banho se debulhou em lágrimas. Decidiu que passaria na casa da doceira e depois visitaria a irmã. Tocou a campainha e quem atendeu foi o sobrinho: - Oi, tia. - Sua mãe está em casa? Anita apareceu na sala e abraçou Aparecida, satisfeita com a visita surpresa. - Minha irmã, que bom te ver! Me diga, quais são as novidades? - Vim aqui porque preciso que você me prometa uma coisa. - Pode falar. - Não estou com bom pressentimento. Acho que não duro até meu aniversário. - Como assim? Brincadeira, né? - Não. Sério. Morro antes. - Você está doente? - Não. Minha saúde está ótima. - Então que maluquice é essa? Vai fazer trinta anos, tá muito nova para morrer. - Não vou morrer de morte natural. Será um acidente. - Já sei. Foi numa cartomante e ela falou essa bobagem? - Pesadelo. Tive um pesadelo horrível. É um aviso. - Me conta. Como foi o pesadelo? - Não conto. Me arrepio quando penso. Só quero que você me prometa uma coisa. Perdida com a conversa da irmã, pede licença e vai para a cozinha tomar um copo de água. Volta com café quentinho e biscoitinhos. Encontra Aparecida com olhar distante e mão na boca. Preocupa-se: - Toma um cafezinho. Come os biscoitinhos também acabei de fazer. - Não quero. Estou sem apetite. Nervosa, Aparecida segura nas mãos de Anita com força. Chorando, um ganido de dar dó, repete: - Me promete uma coisa! Diz que sim. Pelo amor de Deus! - Diga logo. O que é. Você está me assustando. - Se eu morrer antes do meu aniversário, você faz uma festa pra mim mesmo que eu esteja morta? - Festa? Na minha ou na sua casa? – debochou, levando na brincadeira. - Não. No cemitério. No meu túmulo. - Que maluquice! Vou levar você ao médico. Endoidou. Aparecida continuou o lamento: - Diz que jura. Isso não é loucura. É pressentimento. Os salgados e o bolo já estão pagos. Presente do Juarez. - Você não vai morrer! - Diz que jura!? Eu imploro. Aparecida se ajoelhou diante da irmã, beijando-lhe os pés com a humildade de um cachorro sarnento. Para se ver livre da situação constrangedora, Anita concordou. Aparecida era teimosa. Sabia. Desde criança. Quando cismava com alguma coisa, ninguém conseguia fazê-la mudar de ideia. - Tá bom Aparecida. Tá bom. - Se você não cumprir com a promessa puxo seu pé de noite! - Cruzes! Já aceitei. Farei uma bela festa no cemitério. Pode deixar. Amedrontada com as próprias palavras, bateu na mesa de madeira três vezes. Aparecida se despediu da irmã e saiu apressada: - Quase na hora do almoço. Deixa eu ir. O tintureiro ficou de entregar as calças do Juarez antes das duas da tarde. A conversa com a irmã lhe fizera bem. Agora sabia que viva ou morta teria festa de aniversário. Gostava de festas. Desde garota. Juarez chegou do trabalho preocupado com a conversa que tivera com a esposa pela manhã. Cheio de medo da resposta, perguntou: - E a angústia? Passou? - Passou. Conversei com a Anita e ela prometeu que se eu morrer faz a minha festa de aniversário no cemitério. - Coisa mórbida. Acho que vou levar você ao psiquiatra. - Pra quê gastar dinheiro com médico? Não passo do meu aniversário. - Você não tem jeito, não. Chega! Juarez se trancou no banheiro. “Precisava de um longo banho. A noite ia ser longa. Aparecida estava pirando” – pensou. Parte II
Quinze dias antes do aniversário, Aparecida acordou feliz. Voltaria a trabalhar e o chefe já lhe dera a novidade por telefone: “Seria promovida.”. Despediu-se do marido e saiu apressada, cantarolando. Queria chegar cedo à repartição para conhecer a nova sala. Com a bolsa debaixo do braço, viu o ônibus parar no ponto, do outro lado da rua. Correu para pegar a condução. Não percebeu o carro que vinha em sentido contrário. O Corsa pegou Aparecida em cheio jogando-a para o alto. Caiu estatelada na calçada. Logo a multidão rodeou o corpo da atropelada. Juarez chegou transtornado, vinte minutos depois do acidente. Consolado pelos pedestres, repetia: - Ela saiu de casa tão feliz! Ia fazer trinta anos! Tão nova! Por quê???? Anita apareceu histérica amparada pelo filho. Atirou-se no chão urrando junto ao corpo da irmã. Aparecida abriu os olhos, pegou Anita pelo pescoço e num último suspiro, murmurou no ouvido dela: - Minha festa de aniversário. Não esquece. Alguém gritou para o bombeiro: - Ela tá viva! A morta tá viva! Logo se formou uma pequena confusão no meio da rua: - Impossível. O médico falou que ela tá morta! - Tá viva! O burburinho aumentou. Chamaram o médico de volta. Ele reexaminou o corpo de Aparecida. Impaciente, sentenciou: - Tá morta. Mortinha. Parem de brincar com coisa séria. Tenho mais o que fazer. A multidão gritava: - Ela falou! Anita confirmava: - Me puxou pelo pescoço. Tô sentindo a mão dela até agora. Duas horas depois o rabecão levou o corpo de Aparecida. O velório seguiu em clima de consternação com direito a berros, discursos e tumulto. Anita e Juarez não saíram de perto da morta. Na hora que o caixão baixou a sepultura, Anita olhou para o alto e gritou batendo no peito: - A festa do seu aniversário será inesquecível! Promessa é dívida! Na missa de sétimo dia, Juarez tentou convencer a cunhada a cancelar a comemoração. Ela bateu o pé: - Não, não e não. Minha irmã ameaçou. Se eu não cumprir com a promessa, ela puxa meu pé de noite. - Ela tá morta! Os mortos não voltam! - Você diz isso porque o pé não é seu. O sobrinho de Aparecida se meteu na discussão: - Aí tio, deixa minha mãe fazer a festa. É surreal, mas deve ser maneiro uma festa no cemitério. Dark. Super dark. Depois de muita discussão, Juarez cedeu, mas com uma condição: - Você é quem vai convidar as pessoas. Não quero me meter e nem ser chamado de louco. Nem apareço na festa. - Combinado. Vai perder um festão. Disposta a não decepcionar a morta, Anita ligou para vizinhos, amigos e alguns parentes, convidando-os para a estranha comemoração: - Aparecida fazia questão da sua presença. Terá bolo e salgadinho. Nada de reza e nem música fúnebre. A aniversariante gostava de pagode. Alguns convidados duvidaram da sanidade de Anita: - Coitadinha, não suportou a morte da irmã. Destrambelhou de vez! Se para os impressionados o convite parecia mórbido, os festeiros gostaram da ideia. No dia da festa compareceram mais de trinta pessoas entre parentes, vizinhos e amigos. Os convidados bebiam e comiam em volta do túmulo de Aparecida. De fundo, o aparelho de som portátil tocava pagodes da moda. Há quem ensaiasse alguns passos de dança. A animação era grande. Teve até fila para tirar foto segurando o porta-retrato que enfeitava o túmulo da aniversariante. O sobrinho era o mais entusiasmado: - Vou colocar as fotos no orkut. Meus amigos vão morrer de inveja. Irado! Onze horas cantaram parabéns e partiram o bolo. Antes da meia-noite a festa acabou. A irmã da aniversariante aconselhou: - Não é de bom agouro ficar no cemitério depois da meia-noite. Os mortos precisam descansar. Antes de ir embora, Anita ficou sozinha para se despedir da morta. Emocionada e com lágrimas nos olhos, deixou um pedaço de bolo ao lado da foto de Aparecida. Com uma rosa na mão, Anita encaminhava-se sozinha, para a porta de saída, iluminada pela luz da lua. De repente, sentiu um vento frio fazendo-lhe cócegas nos ouvidos. Sorriu. Sabia que era a irmã, agradecida pela homenagem. Com a alma mais leve, prometeu voltar no próximo ano. Fim de festa. Hora de gatos e cachorros invadirem a sepultura da falecida. Famintos, acabaram com os restos de salgadinho e se fartaram com o pedaço de bolo.
Nota do Editor: Celamar Maione é radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador, mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.
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