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COLUNISTA
Celamar Maione
12/10/2009 - 13h05
O aniversário da falecida
 
 


Parte I

Aparecida acordou com imensa angústia no peito. Chamou o marido para trabalhar e preparou o café. Enquanto colocava a mesa, a angústia voltou. Sentiu uma vontade inexplicável de chorar. Sentou-se à mesa, cortou o pão, passou manteiga e assim que Juarez deu o primeiro gole no café com leite, Aparecida desabafou:
- Acordei tão estranha hoje. Com uma dor no peito.
- Como assim? Ta passando mal?
- Tô com um aperto no peito. Um mau pressentimento.
- Pressentimento?
- Aposta que não duro até o meu aniversário?
- Mas seu aniversário é daqui a um mês.
- Morro antes.
- Besteira. Vou deixar o dinheiro para você pagar o bolo antecipado.

Aparecida apertou a boca em sinal de desânimo. O marido saiu gritando que os quarenta reais estavam em cima da mesa da sala. Ela nem agradeceu. Durante o banho se debulhou em lágrimas. Decidiu que passaria na casa da doceira e depois visitaria a irmã. Tocou a campainha e quem atendeu foi o sobrinho:
- Oi, tia.
- Sua mãe está em casa?

Anita apareceu na sala e abraçou Aparecida, satisfeita com a visita surpresa.
- Minha irmã, que bom te ver! Me diga, quais são as novidades?
- Vim aqui porque preciso que você me prometa uma coisa.
- Pode falar.
- Não estou com bom pressentimento. Acho que não duro até meu aniversário.
- Como assim? Brincadeira, né?
- Não. Sério. Morro antes.
- Você está doente?
- Não. Minha saúde está ótima.
- Então que maluquice é essa? Vai fazer trinta anos, tá muito nova para morrer.
- Não vou morrer de morte natural. Será um acidente.
- Já sei. Foi numa cartomante e ela falou essa bobagem?
- Pesadelo. Tive um pesadelo horrível. É um aviso.
- Me conta. Como foi o pesadelo?
- Não conto. Me arrepio quando penso. Só quero que você me prometa uma coisa.

Perdida com a conversa da irmã, pede licença e vai para a cozinha tomar um copo de água. Volta com café quentinho e biscoitinhos. Encontra Aparecida com olhar distante e mão na boca. Preocupa-se:
- Toma um cafezinho. Come os biscoitinhos também acabei de fazer.
- Não quero. Estou sem apetite.

Nervosa, Aparecida segura nas mãos de Anita com força. Chorando, um ganido de dar dó, repete:
- Me promete uma coisa! Diz que sim. Pelo amor de Deus!
- Diga logo. O que é. Você está me assustando.
- Se eu morrer antes do meu aniversário, você faz uma festa pra mim mesmo que eu esteja morta?
- Festa? Na minha ou na sua casa? – debochou, levando na brincadeira.
- Não. No cemitério. No meu túmulo.
- Que maluquice! Vou levar você ao médico. Endoidou.

Aparecida continuou o lamento:
- Diz que jura. Isso não é loucura. É pressentimento. Os salgados e o bolo já estão pagos. Presente do Juarez.
- Você não vai morrer!
- Diz que jura!? Eu imploro.

Aparecida se ajoelhou diante da irmã, beijando-lhe os pés com a humildade de um cachorro sarnento. Para se ver livre da situação constrangedora, Anita concordou. Aparecida era teimosa. Sabia. Desde criança. Quando cismava com alguma coisa, ninguém conseguia fazê-la mudar de ideia.
- Tá bom Aparecida. Tá bom.
- Se você não cumprir com a promessa puxo seu pé de noite!
- Cruzes! Já aceitei. Farei uma bela festa no cemitério. Pode deixar.

Amedrontada com as próprias palavras, bateu na mesa de madeira três vezes. Aparecida se despediu da irmã e saiu apressada:
- Quase na hora do almoço. Deixa eu ir. O tintureiro ficou de entregar as calças do Juarez antes das duas da tarde.

A conversa com a irmã lhe fizera bem. Agora sabia que viva ou morta teria festa de aniversário. Gostava de festas. Desde garota. Juarez chegou do trabalho preocupado com a conversa que tivera com a esposa pela manhã. Cheio de medo da resposta, perguntou:
- E a angústia? Passou?
- Passou. Conversei com a Anita e ela prometeu que se eu morrer faz a minha festa de aniversário no cemitério.
- Coisa mórbida. Acho que vou levar você ao psiquiatra.
- Pra quê gastar dinheiro com médico? Não passo do meu aniversário.
- Você não tem jeito, não. Chega!

Juarez se trancou no banheiro. “Precisava de um longo banho. A noite ia ser longa. Aparecida estava pirando” – pensou.


Parte II

Quinze dias antes do aniversário, Aparecida acordou feliz. Voltaria a trabalhar e o chefe já lhe dera a novidade por telefone: “Seria promovida.”. Despediu-se do marido e saiu apressada, cantarolando. Queria chegar cedo à repartição para conhecer a nova sala. Com a bolsa debaixo do braço, viu o ônibus parar no ponto, do outro lado da rua. Correu para pegar a condução. Não percebeu o carro que vinha em sentido contrário. O Corsa pegou Aparecida em cheio jogando-a para o alto. Caiu estatelada na calçada. Logo a multidão rodeou o corpo da atropelada. Juarez chegou transtornado, vinte minutos depois do acidente. Consolado pelos pedestres, repetia:
- Ela saiu de casa tão feliz! Ia fazer trinta anos! Tão nova! Por quê????

Anita apareceu histérica amparada pelo filho. Atirou-se no chão urrando junto ao corpo da irmã. Aparecida abriu os olhos, pegou Anita pelo pescoço e num último suspiro, murmurou no ouvido dela:
- Minha festa de aniversário. Não esquece.

Alguém gritou para o bombeiro:
- Ela tá viva! A morta tá viva!

Logo se formou uma pequena confusão no meio da rua:
- Impossível. O médico falou que ela tá morta!
- Tá viva!

O burburinho aumentou. Chamaram o médico de volta. Ele reexaminou o corpo de Aparecida. Impaciente, sentenciou:
- Tá morta. Mortinha. Parem de brincar com coisa séria. Tenho mais o que fazer.

A multidão gritava:
- Ela falou!

Anita confirmava:
- Me puxou pelo pescoço. Tô sentindo a mão dela até agora.

Duas horas depois o rabecão levou o corpo de Aparecida. O velório seguiu em clima de consternação com direito a berros, discursos e tumulto. Anita e Juarez não saíram de perto da morta. Na hora que o caixão baixou a sepultura, Anita olhou para o alto e gritou batendo no peito:
- A festa do seu aniversário será inesquecível! Promessa é dívida!

Na missa de sétimo dia, Juarez tentou convencer a cunhada a cancelar a comemoração. Ela bateu o pé:
- Não, não e não. Minha irmã ameaçou. Se eu não cumprir com a promessa, ela puxa meu pé de noite.
- Ela tá morta! Os mortos não voltam!
- Você diz isso porque o pé não é seu.

O sobrinho de Aparecida se meteu na discussão:
- Aí tio, deixa minha mãe fazer a festa. É surreal, mas deve ser maneiro uma festa no cemitério. Dark. Super dark.

Depois de muita discussão, Juarez cedeu, mas com uma condição:
- Você é quem vai convidar as pessoas. Não quero me meter e nem ser chamado de louco. Nem apareço na festa.
- Combinado. Vai perder um festão.

Disposta a não decepcionar a morta, Anita ligou para vizinhos, amigos e alguns parentes, convidando-os para a estranha comemoração:
- Aparecida fazia questão da sua presença. Terá bolo e salgadinho. Nada de reza e nem música fúnebre. A aniversariante gostava de pagode.

Alguns convidados duvidaram da sanidade de Anita:
- Coitadinha, não suportou a morte da irmã. Destrambelhou de vez!

Se para os impressionados o convite parecia mórbido, os festeiros gostaram da ideia. No dia da festa compareceram mais de trinta pessoas entre parentes, vizinhos e amigos. Os convidados bebiam e comiam em volta do túmulo de Aparecida. De fundo, o aparelho de som portátil tocava pagodes da moda. Há quem ensaiasse alguns passos de dança. A animação era grande. Teve até fila para tirar foto segurando o porta-retrato que enfeitava o túmulo da aniversariante. O sobrinho era o mais entusiasmado:
- Vou colocar as fotos no orkut. Meus amigos vão morrer de inveja. Irado!

Onze horas cantaram parabéns e partiram o bolo. Antes da meia-noite a festa acabou. A irmã da aniversariante aconselhou:
- Não é de bom agouro ficar no cemitério depois da meia-noite. Os mortos precisam descansar.

Antes de ir embora, Anita ficou sozinha para se despedir da morta. Emocionada e com lágrimas nos olhos, deixou um pedaço de bolo ao lado da foto de Aparecida. Com uma rosa na mão, Anita encaminhava-se sozinha, para a porta de saída, iluminada pela luz da lua. De repente, sentiu um vento frio fazendo-lhe cócegas nos ouvidos. Sorriu. Sabia que era a irmã, agradecida pela homenagem. Com a alma mais leve, prometeu voltar no próximo ano.

Fim de festa. Hora de gatos e cachorros invadirem a sepultura da falecida. Famintos, acabaram com os restos de salgadinho e se fartaram com o pedaço de bolo.


Nota do Editor: Celamar Maione é radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador, mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.
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