Madame Lu entra na igreja depois da missa das seis, encaminha-se para a segunda fila à esquerda e ajoelha-se lentamente. Em seguida, abre a bolsa e pega um terço, segura-o firme com as duas mãos, fecha os olhos e começa a rezar. Uma senhora aproxima-se e toca em seus braços. Ela dá um salto, mas relaxa quando a mulher mostra a sacolinha. Madame Lu pega uns trocados, coloca na sacola e volta a rezar. A igreja fica vazia e silenciosa. Quinze minutos depois, olha o relógio e perde a paciência. Resmunga alguma coisa e quando prepara-se para guardar o terço, sente duas mãos pesadas pressionando-lhe os ombros. - Desculpe a demora. Foi o trânsito. - Pensei que não viesse. - Jamais. Trato é trato e seria perigoso não aparecer. - Certamente. Trouxe a outra parte? - Está tudo aqui. Conforme o combinado. - Então ajoelhe-se ao meu lado. - Pra quê? Rezar? Já tenho um lugar reservado no inferno - riu, apertando os lábios. - Pode ser que rezando Deus o perdoe. Nunca se sabe. - Não existe perdão para o que eu mandei fazer. - Acredita em Deus? - É mais fácil acreditar. Sim, acredito. - Então porque me pediu para fazer o serviço? - E você? Acredita em Deus? - Nunca tive tempo para pensamentos existenciais. Sou pragmática. Muito ocupada. - Ocupada? Eu diria que intrigante e misteriosa. - Faz parte da minha profissão. - Não quer jantar um dia desses comigo? - Não me envolvo com clientes. - Nosso contrato encerra hoje. Serviço feito e pago. Não sou mais seu cliente. - Não misturo lazer com trabalho. Aliás, a polícia desconfia de alguma coisa? - Me fez algumas perguntas. Mas parece convencida de que foi latrocínio. - Vi sua foto nos jornais. Parecia um marido sinceramente desesperado, abraçado ao corpo da mulher no asfalto, clamando por justiça. - Sou um artista. E você uma excelente profissional. Muito boa no que faz. - É a prática. Não deixo rastro. Na cidade do Rio de Janeiro sua finada mulher já virou estatística. - Nada como contratar uma matadora experiente. Aprendeu com quem o ofício? - Vocação. Arrependido? - Não. Se pudesse mataria aquela vaca gorda novamente. - Você é um perfeito cavalheiro - disse ironicamente - Não sei quem é pior: se sou eu ou meus clientes. - E nós dois? - O que tem nós dois!? - Que tal passarmos uma noite juntos? Gostaria de saber se trepa tão bem quanto mata. - E você acha que eu treparia com um homem que manda matar a esposa? - Você não é minha esposa. É apenas uma paquera perigosa - riu cinicamente. - Sou matadora e não prostituta. - Mas é uma mulher e linda por sinal. - Sexo despende muita energia. Gasto minha energia no trabalho. - Não acredito que só veio ao mundo para matar. Uma mulher sensual como você? - O cheiro da morte me excita. Preciso de adrenalina para preencher o vazio que existe em mim. - Não acredito que seja tão perversa. Existem outras maneiras de se preencher um vazio. - Desculpe, preciso ir. Já fiquei tempo demais aqui. - Tem medo de se apaixonar por mim? - Medo? Não existe essa palavra no meu dicionário. Preciso ir. Não insista. - Não vai conferir o dinheiro? - Confio em você. - Não quer mesmo sair comigo? - Não. Toma meu cartão. Se precisar dos meus serviços novamente, entre em contato. - Você é uma metamorfose: “Cynara Pedicure. Atendo a domicílio” - leu o cartão em voz alta e segurou no braço de Madame Lu: - Era uma cartomante e agora se transformou numa pedicure!? - Na minha profissão é preciso mudar. Não existe rotina. - Posso ligar amanhã? - Amanhã viajo para outro estado. Novo cliente. A indústria da morte não pára. - Desse jeito vou largar meu emprego e começar a matar gente. - Se tiver vocação, pode virar meu concorrente. Dá dinheiro. Nunca passei fome. - Você trabalha sozinha? - Você é muito curioso. Já disse: Não me envolvo e nem dou informação a respeito da minha vida. - É uma pena. Gostaria de conhecê-la melhor. - Nosso contato termina aqui. Hora de partir. Sai primeiro. Ninguém pode nos ver juntos. Madame Lu fica sozinha. Torna a pegar o terço. Coloca a pasta com o dinheiro em cima das pernas e fecha os olhos. Concentra-se durante alguns minutos. Quando vira-se pra ir embora, esbarra em Padre Antonio: - Desculpe, Padre. - Nossa, que moça bonita! Qual é seu nome, minha filha? - Bárbara. - Devota de Santa Bárbara? - Minha mãe colocou o nome em homenagem a ela. - Que Deus a abençoe e a conserve assim, sempre bela. - Que assim seja, Padre!
Nota do Editor: Celamar Maione é radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador, mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.
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