Olhei o relógio e dei um pulo: “Onze da noite!” Estava cercado por uma lixeira fedida, papéis espalhados, computador ligado e dez copinhos plásticos, sujos de café. Estiquei as pernas, alonguei os braços e respirei aliviado: “Relatório pronto para a reunião”. Precisava daquela promoção. Grana curta. Filho pra nascer. Esposa desempregada. Contas a pagar. O celular tocou. Era Marina perguntando a que horas eu ia chegar em casa. Desliguei o computador e guardei o relatório dentro da gaveta. Andei até o corredor e apertei o botão do elevador. Ouvi um barulho de móvel sendo arrastado, vindo da sala do meu chefe. “Quem poderia ser Eu estava sozinho no escritório?!” A turma da limpeza já se fora. Reparei que a sala do Doutor Arnaldo estava com a porta encostada. Resolvi dar uma de detetive. Com o coração aos pulos e as mãos geladas, abri a porta e acendi a luz de uma vez só. Uma cena inusitada se desenhou diante de mim. Doutor Arnaldo e o boy se agarravam, completamente nus. Num impulso, tirei o celular do bolso e comecei a fotografar. Desespero. Meu chefe mudou de cor. Tentava colocar as calças e gritava para o boy pegar meu celular. Deixei os dois na sala se ajeitando e corri para o elevador. Cheguei na garagem tenso, entrei no carro e dei a partida. No caminho pensei: “Enfim minha promoção, guardada num celular!” Queria dinheiro. Pensei na minha casa que precisava de uma pintura nova. Um filho pra nascer. Minha liberdade financeira estava na vidinha escusa do Doutor Arnaldo. Quem diria, amante do boy. O garoto só tem 16 anos. Meu chefe é quase um pedófilo. E com aquela pinta de macho. Casado com uma gostosona vinte anos mais jovem. Lembrei-me dos discursos machistas que ele costumava fazer durante o almoço no refeitório. A arrogância na hora de demitir um funcionário. Difícil acreditar que aquele homem com pose de moralista, seduzira um garoto de 16 anos. Cheguei em casa e nem dei ouvidos às reclamações da Marina. Tomei um banho, fiz um lanche e desmaiei de cansaço. Antes, pensei na promoção. Na cara do Doutor Arnaldo quando eu chegasse no dia seguinte para trabalhar. Sonhei que era um empresário de sucesso em uma multinacional. Oito em ponto, eu já estava na empresa. Em cima da mesa, um recado da secretária, pedindo para eu comparecer com urgência à sala do Doutor Arnaldo. Dei um sorriso de vitória. Fiz um suspense e me dirigi ao refeitório para o cafezinho de praxe. Imaginei-me frente a frente com o bigodudo. Agora eu não seria mais um capacho. Um medroso temendo a demissão. A vida daquele homenzinho arrogante estava em minhas mãos. Coloquei a mão na maçaneta e entrei sem bater. Ele me recebeu com um sorriso forçado e me convidou para sentar. Nunca fui alvo de tamanha gentileza. Durante cinco minutos manteve-se em silêncio. Pediu dois cafés à secretária e me encarando olho no olho, perguntou quanto eu queria para ficar calado. Dei uma risada cínica, tomei um gole de café e falei da promoção. Imediatamente ele chamou a secretária. Suspendeu a reunião das três e me apresentou como o novo Gerente de Departamento. Dona Rosélia me levou até minha nova sala e me ajudou a arrumá-la. Meus colegas ficaram surpresos com a novidade. Recebi parabéns, sorrisos invejosos e questionamentos: “Você é novo na empresa. Como conseguiu? Todo mundo pensou que Seu Jairo ficaria com a promoção”. Meu ego foi no céu. Olhei para aquele bando de falsos com ar de superioridade. Nunca me senti tão paparicado por aquela corja de puxa-sacos. Fiz uma pose de poderoso chefão e me tranquei na minha nova sala. Assim que abri a porta de casa, contei a novidade a Marina. Ela me abraçou e entrou em êxtase quando falei do aumento. Dei as ordens. Ela podia gastar o quanto quisesse na decoração do quarto do nosso filho. Quando completei um mês no cargo, Doutor Arnaldo me chamou na sala dele. O bigodudo queria as fotos. Neguei. Elas ficariam comigo pelo menos um ano. Se devolvesse é claro que seria demitido. Argumentou. Contra-argumentei. Estava me saindo um bom negociador. Vermelho e com os olhos esbugalhados, ele bateu na mesa e gritou: “seis meses!!”. Titubiei. Ele blefou. Acho. Perguntou o que mais eu queria para entregar-lhe as fotos em seis meses. Pensei na esposa dele. Gostosa e cheirosa. Arrisquei. Se ele me deixasse comê-la de garfo e faca, teria o celular em seis meses. Ele coçou o bigode, deu um sorriso amarelo e pediu que eu voltasse em uma hora. Voltei. Para minha surpresa, me entregou a chave do carro e ordenou que eu fosse até a casa dele pegar uns documentos. A esposa estaria à minha espera. Babei. Imagina aquela gostosa nas minhas mãos! Com o consentimento do marido! Minha vida deu uma ginada de cento e oitenta graus. Avisei a secretária que voltaria no final da tarde. Saí da empresa que nem um cão faminto, raivoso e no cio, pronto para cercar a fêmea. No caminho, percebi que era seguido por dois caras de capacete numa Honda. Acelerei para me certificar se estavam no meu calcanhar ou era apenas impressão. Aceleraram. Logo me veio à cabeça Doutor Arnaldo. Aquele viado, filho da puta! Parei num sinal. Pararam atrás. Olhei pelo retrovisor. Conversavam e olhavam na minha direção. Pressenti o perigo. No sinal enviei as fotos dele para os e-mails de três funcionários importantes da empresa e um inspetor de polícia, amigo meu. Acelerei o carro e entrei numa rua movimentada. Quando parei no engarrafamento, encostaram a moto do meu lado. O carona bateu na janela. Não olhei. O barulho de vidro estilhaçado gelou minha espinha. Voltei ao útero materno. Pensei no meu filho que ia nascer. Morro, mas fodo com a vida do Doutor Arnaldo. Nota do Editor: Celamar Maione é radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador, mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.
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