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Contos
12/01/2009 - 17h20
Do outro lado da porta
Celamar Maione
 

Nove horas da manhã de um sábado nublado. Acordei com o vizinho de cima martelando na minha cabeça. Tive vontade de enfiar uma bermuda e esmurrar a porta do cidadão. Respirei fundo, contei até dez e saí da cama conformado. Antes de escovar os dentes fui até a cozinha pra fazer um café forte. Ao passar pela sala, vi que, por baixo da porta, entrava um líquido vermelho que parecia sangue. Parecia? Não, era sangue. Ou seria algum produto de limpeza novo e o faxineiro, descuidado, deixou escorrer?

Interfonei para o porteiro e perguntei se havia algum servente fazendo faxina pelos andares. Não havia. Curioso e ao mesmo tempo intrigado, me abaixei, passei a mão e quase vomitei. Era sangue. Cacete, havia alguém morto do outro lado. Homem ou mulher? Um animal? Ou seria uma brincadeira de mau gosto das crianças do quarto andar? Abrir a porta e verificar? Mas se eu abrisse e o defunto estivesse encostado na soleira da porta e caísse na minha sala?

Por um momento tentei acreditar que era um pesadelo e logo passaria. Coloquei o café pra fazer. Entrei no banheiro com a cabeça latejando. Tomei uma ducha, escovei os dentes e voltei pra sala. O sangue invadia meu apartamento formando uma poça. E se eu ligasse para a polícia? Seria suspeito de assassinato? O telefone tocou. Dei um pulo. Era Carla, minha namorada. Tínhamos combinado de viajar pra Búzios e eu estava atrasado meia hora. Expliquei o que acontecia. Ela me chamou de mentiroso e desligou sem despedidas.

Tomei coragem e interfonei para o porteiro. Meia hora depois a polícia batia na minha porta acompanhada do Severino. Abri com o coração aos pulos. Olhei para o chão e lá estava o corpo de um desconhecido, aparentando 40 anos, com a cabeça ensanguentada, a boca aberta e os olhos arregalados. Sem conseguir respirar, eu olhava para o defunto, para a polícia e buscava explicação no rosto do Severino. Nervoso, o porteiro gaguejava contando aos policiais que o morto era genro do morador do 502, meu vizinho do lado.

O homem entrara pela manhã no prédio. A polícia perguntou pelo morador do 502. O porteiro explicou que ele costumava passear com o cachorro pela manhã.

A notícia se espalhou pelo prédio. Em poucos minutos, o corredor do meu andar lotou de curiosos. As mal-amadas que moravam em frente vibravam com a confusão. Finalmente um assunto diferente para animar o sábado – imaginei. As crianças desciam gritando pelas escadas. E a polícia me crivando de perguntas.

Eu repetia que nunca vira o morto, mas não convencia. O policial baixinho e de bigode era o mais desconfiado. Ele achava estranho que eu não tivesse ouvido nenhum barulho de briga. Expliquei que estava com a porta do quarto fechada e o ar-condicionado ligado. Que o único barulho que eu ouvia era do vizinho de cima martelando na minha cabeça.

Meu telefone tocou. Era minha mãe preocupada. Acabara de escutar a notícia no rádio. Tranquilizei-a dizendo que eu não era nenhum assassino. Uma da tarde, Seu Soares, sogro do morto, chegou acompanhado de Adamastor, um Coker de cinco anos. O policial baixinho e de bigode entrou com Seu Soares no 502. Ficaram trancados durante duas horas. Seu Soares saiu chorando acompanhado do policial.

Ele confessou o crime. Contou à polícia que seis e meia da manhã o genro tocou a campainha. Os dois discutiram por causa de um empréstimo que o morto fez em nome dele e não pagou. Seu Soares ameaçou contar à filha. O genro o jurou de morte e saiu batendo a porta. Voltou e meteu a mão na maçaneta. A porta estava trancada. Tocou a campainha. Amedrontado, Seu Soares abriu a porta com uma barra de ferro na mão. Novo desentendimento. Seu Soares tacou a barra de ferro na cabeça do genro. Ele caiu na minha porta. Acreditando que o marido da filha estava apenas desmaiado, foi passear com o cachorro e depois resolveu parar num boteco para tomar uma cerveja.

Assim que o rabecão retirou o corpo, por volta de três da tarde, pedi ajuda a um faxineiro para limpar o sangue. Passei o resto da tarde explicando às minhas tias e à minha mãe o que acontecera. Desliguei o telefone com a cabeça explodindo. Tomei um analgésico e ia me enfiar debaixo do chuveiro, quando o telefone tocou novamente. Era Carla. Ouviu o crime no noticiário e queria me pedir desculpa. Detesto mulher desconfiada. Recusei secamente o convite para uma saída. Ouvi alguns desaforos e levei com o telefone na cara. Não me importei. Já estava acostumado.

Durante vinte minutos deixei a água fria escorrer pelo meu corpo tenso. Saí do banho e meu estômago roncou. Estava até aquela hora apenas com um cafezinho. Resolvi comer uma pizza perto de casa. Enquanto comia a pizza e bebia um chope, uma loira jantando numa mesa um pouco distante, não parava de me olhar. Correspondi. Paguei a pizza e fui até a mesa da mulher. Quando sentei, percebi a mancada. O pomo-de-adão denunciava. Pedi desculpas e corri para o meu apartamento. Saí do elevador e quando olhei para o chão, lembrei do corpo ensangüentado. Tive ânsia de vômito. Entrei no apartamento, fechei a porta do quarto, liguei o ar-condicionado e já me preparava para dormir, quando lembrei de uma coisa importante: a vassoura. Jurei que, se o filho da puta do vizinho de cima me acordasse, martelando na minha cabeça, ia ter guerra. Exausto do mundinho de merda, adormeci quinze minutos depois.


Nota do Editor: Celamar Maione é radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador, mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.

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