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Contos
03/11/2008 - 05h30
Uma noite diferente
Celamar Maione
 

Quase onze horas. Peguei minha carteira para pagar a conta, quando o português se aproximou:
- Vou fechar. Vai querer a saideira?
- Qual é portuga, hoje é sábado. Boteco que se preza entra pela madrugada.
- Essa área tá muito perigosa. Depois das dez a coisa fica sinistra.
- Quanto eu devo?
- Não vai tomar a saideira?
- Não. Ainda vou a uma festa.
- Não vai pra casa? Brigou com a patroa?
- Hoje estou solteiro. Disse que ia emendar um plantão no outro. Estou por conta do destino até às 7 da manhã.

Paguei a conta, bebi o último gole da cerveja já quente e saí do bar. As ruas estavam desertas. Parei para pegar um táxi. Esperei um pouco e decidi ir de ônibus. Caminhei até o ponto, entediado e cuspindo no meio fio, na tentativa de apagar o ódio que consome minha vida. Não sou muito de noitada, mas acabei aceitando o convite para a festa de aniversário de um colega de trabalho. O ônibus chegou. Sentei no primeiro banco e fui conversando com o motorista até a Gávea.

Passava da meia-noite quando cheguei. A festa parecia animada. Os convidados faziam pose e sorriam para o flash. As mulheres excitavam-se e davam gritinhos histéricos, além de gesticularem muito, com roupas provocantes e maquiagem pesada. Todas no cio. Ansiosas por uma boa trepada.

Quando Orlando me viu, veio em minha direção exibindo um copo de uísque na mão. Percebia-se que a bebida já havia tomado sua alma.
- Porra cara, até que enfim saiu da toca. Vê quanta gente bonita! Aqui só tem coisa fina. Teu amigo é bem relacionado.
- Tô vendo.
- Anime-se. Quero lhe apresentar umas mulheres quentes.
- Não se preocupe comigo, eu me viro.
- Vai ficar à vontade?
- Já estou.

Peguei um copo de cerveja, abri um botão da camisa e fiquei observando a mulherada frenética. Uma morena de vestido preto e lábios carnudos chamou minha atenção. Ela me devorava com o olhar. Vestia uma roupa cara. “O que uma porra dessas vai querer com um pé chinelo como eu?” – pensei. Foi só dar um riso de lado para ela se aproximar, com as pupilas dilatadas e as narinas ofegantes.
- Primeira vez que vejo você em uma festa do Orlando. Estou enganada?
- Não.

Fui monossilábico. Preguiça de conversar. Ela percebeu, mas continuou:
- Meu nome é Lorena e o seu?
- Marco.

Engrenamos um papo que deu para esquecer da minha vida miserável. Ela falava no meu ouvido e ria alto. Relaxei. Percebi que não me livraria dela. E nem queria mais. Três da manhã ela me fez o convite:
- Quer ir pra minha casa?
- Vamos, mas tenho que sair às sete.

Lorena passou as mãos no meu queixo e comentou:
- Dá para fazer muita coisa até lá.

O táxi seguiu em direção ao Leblon. Prédio elegante. Lorena colocou a chave na porta e entramos no amplo apartamento. Ela acendeu a luz do abajur e me ofereceu uma bebida. Aceitei uma vodka, já excitado com os momentos de prazer que viveria. Ela sentou-se ao meu lado e acariciou meu corpo. Escutei um barulho vindo do quarto.
- Não estamos sozinhos?
Ela sorriu, maliciosa.
- Vamos para o meu quarto?
- Não posso demorar. São quase 4 da manhã, sete tenho que ir embora.
- Tá bom, você já falou. Quero lhe mostrar uma coisa.

Entramos no quarto. Um homem dormia na cama de casal.
- Que porra é essa? – perguntei desconfiado. Lorena tentou me tranqüilizar:
- Meu marido. Ele gosta de ver, mas se você quiser, ele também participa da brincadeira.
- Como é que é?!

Discutimos. O homem acordou e passou a língua nos lábios excitado. Lorena puxou-me pela cintura e disse, lânguida, no meu ouvido:
- Fica.

Mandei pra merda as convenções e fiz parte do jogo. Peguei os dois. Percebia pelo olhar deles como estavam gostando do joguinho. O homem salivava. Sete em ponto decretei o final da partida. Lorena me levou até a porta.
- Volta quando?
- Nunca mais.
- Quanto foi?

Olhei em volta e parei com o olhar na estante. Apontei o dedo:
- Quero aquela imagem de Santo Antonio.
- Ela, não. É do meu marido. Escolhe outra coisa.
- Ou ela ou então vou contar para o Orlando que vocês são dois tarados. Ele tem a língua maior do que a boca.

Saí com a imagem de Santo Antonio embrulhada em papel de presente. Peguei um ônibus pra minha casa em Realengo. Cheguei 9 da manhã. Olhei pro céu e apertei os olhos. Seria um dia de muito sol e calor. Assim que coloquei a chave na porta, o cheiro forte do café me fez esquecer a noite esquisita. Voltei à minha rotina. Na sala encontrei minha cunhada gostosona colocando o açucareiro à mesa. Dei-lhe um beliscão na cintura.
- E aí, quando é que eu vou entrar nessa carne?
- Cuidado, minha irmã tá no quarto.

Cynira chegou na sala com a cadeira de rodas rangendo.
- Já não disse para você colocar óleo na porra dessa cadeira? Esse barulho me irrita.
- Primeiro, bom-dia! Lembra que você me prometeu uma cadeira nova no natal?

Com pena, entreguei-lhe o embrulho, na tentativa de amenizar minha grosseria.
- Toma, acho que você vai gostar.

Os olhinhos pequenos e tristes de Cynira brilharam quando viram a imagem.
- Meu santinho do coração. Vou colocá-lo na mesa de cabeceira. Você comprou?
- Tirei numa rifa. O que eu não faço para vê-la feliz?!

Cynira esticou as mãos e me deu um beijo no rosto. Sorri, constrangido.
- Vamos tomar café? – falou minha cunhada gostosona.
- Primeiro deixa eu jogar uma água no corpo.

Abri o chuveiro até o final. Enquanto a água escorria, a raiva dissipou-se pelo meu corpo. Cuspi no ralo, na esperança de me livrar dos sentimentos contraditórios. Detesto sentir pena. O ser humano é ridículo. Mundo patético!


Nota do Editor: Celamar Maione é radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador, mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.

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