Tarde de uma sexta-feira arrastada. Quando cheguei no pequeno edifício de quatro andares, encontrei a porta de ferro entreaberta. Empurrei, desconfiado, e vi a gatinha siamesa da Norma miando no hall de entrada. Subi as escadas com Samyra se esfregando nas minhas pernas. Cheguei no terceiro andar ofegante. “Preciso fazer ginástica!”. Peguei as chaves para abrir a porta, quando percebi que ela estava encostada. Entrei sem fazer barulho. Samyra me seguiu. Ela miava e me olhava, apertando os olhinhos azuis, querendo me dizer alguma coisa. Chamei pela Norma. Não houve resposta. A sala, na penumbra, dava um ar melancólico ao ambiente. Samyra miou mais alto. Segui-a. Entrou no banheiro. Fui atrás. Me segurei no portal para não cair. Norma estava estendida no chão, de calcinha e sutiã, com os olhos arregalados e a boca aberta. Da cabeça, escorria um filete de sangue. Desorientado, comecei a sacudi-la, na esperança de vê-la sorrindo e me abraçando. Demorei alguns segundos para me convencer de que nunca mais escutaria sua risada gostosa. Fui pra sala angustiado. Andava de um lado para o outro fazendo perguntas e buscando respostas: “Ir embora? Mas e se a velhinha, vizinha da frente, me viu chegar? Quando descobrirem o corpo, vão suspeitar de mim. Melhor chamar a polícia. Precisava vingar a morte de Norma. Será que a velhinha viu o assassino? Ou seria assassina? Quem a odiava tanto a ponto de querer matá-la?“ Num impulso, peguei o celular e liguei pra polícia: “Assassinato. Mulher. Trinta anos. Arma? Não sei. Vocês vêm ou não vêm? Rua das Acácias, número 456, Edifício Luar“. Desliguei, aflito. Em seguida, liguei pra casa e falei com Jandira: “Jandira, não me espera para o jantar. Vou beber alguma coisa com o Evanildo. Lembra dele? Isso. Chegou de Belém ontem. Não tenho hora para voltar“. Cadê a polícia? Quanta demora! Fui até a porta da velhinha. Toquei a campainha. Não me atendeu. Voltei. Abri as cortinas da sala. As nuvens carregadas indicavam uma tempestade próxima. Senti um arrepio percorrendo a espinha. Acendi a luz. “Teria sido um assalto? Mas tudo estava no lugar”. Fui até o quarto. Cama arrumada. Gavetas fechadas. Nada de anormal. Voltei pra sala e senti falta da estátua de bronze que ficava na mesa, ao lado do abajur: “Seria a arma do crime?” Escutei passos pesados na escada. Tocaram a campainha. Dois homens entraram na sala com olhares de interrogação. Me identifiquei, esticando a mão, procurando parecer simpático: - Eu liguei pra polícia. Sou o namorado da Norma. Apresentaram-se secamente: - Inspetor Cardoso. Inspetor Maciel. Inspetor Cardoso tinha a voz rouca. Com um bloquinho na mão ordenou: - Quero ver o corpo. Enquanto examinavam o cadáver, crivaram-me de perguntas. Inspetor Cardoso fez algumas ligações e depois me olhou de maneira arrogante. - Vamos levá-lo pra delegacia. Precisamos do seu depoimento. - Não fiz nada. Cheguei aqui e ela já estava morta. - A vítima tinha inimigos? – perguntou inspetor Cardoso, levantando a sobrancelha. - Que eu saiba, não. - Faz um esforço. Qualquer detalhe é importante no momento. - Ela não gostava do ex-marido. Sempre que se falavam, brigavam. Ele batia nela quando eram casados. - Tem o endereço? Nome? - Sei que mora no Engenho Novo. - Maciel, procura o celular da vítima. Quem mais vocês conheciam? Ela trabalhava fora? Fazia academia? - Na verdade ela não é bem minha namorada. - Não? - Ela era minha amante há dois anos. Sou casado. - Então sua mulher também é suspeita. Anota aí Maciel. - Mas a Jandira não sabe da existência da Norma. - Ninguém sabe o que se passa na cabeça de uma mulher. Quando pensamos que estamos enganando, estamos sendo enganados. Pode ser um crime passional. Enquanto me interrogavam, mais dois policiais, mal-encarados, invadiram o apartamento. A velhinha abriu a porta e ficou olhando pela fresta. Falei pra polícia: - Ela deve saber de alguma coisa. Pode ter visto o assassino. - Vamos falar com ela. A vizinhança será convocada. O senhor conhecia alguém da família além do ex-marido? - O irmão dela. Tenho o telefone dele aqui comigo. - Tinham um bom relacionamento? - Ele é viciado em droga. Tiveram uma briga por causa das drogas há duas semanas. - Entendo. - Lembrei de outra coisa, inspetor. O síndico do prédio. A Norma se desentendeu com ele na última reunião de condomínio. - Maciel – continuou o inspetor da voz rouca – Já olhou o quarto da vítima? Alguma agenda? Vasculha. Tudo é importante. TUDO. Até um simples fio de cabelo. Em seguida, virou-se pra mim, enrugando os olhos e coçando o queixo. - Fica com o meu cartão. Se lembrar de alguma coisa durante o fim de semana, pode me ligar. Estamos esperando o senhor e a sua esposa segunda-feira na delegacia. - Minha mulher e Norma não se conheciam. O que vou dizer a ela? - A verdade. Segunda-feira espero os dois. Endereço e telefone. Saí do prédio antes da chegada do rabecão. Samyra ainda me olhou ansiosa por um carinho. Fiz-lhe um afago morno e parti. Detesto despedida. Entrei em casa e fui direto tomar um banho quente para relaxar. Jandira dormia profundamente. Fiquei meia hora debaixo do chuveiro pensando em como contar a ela que éramos suspeitos de um crime. Não consegui dormir. Levantei cedo com o corpo doído. Passei o sábado com o rosto colado na TV para disfarçar meu pavor. Jandira me tirou do transe. - O jantar na casa dos Santos é ás 9. - Tô moído. Vou ficar em casa. - Já confirmei presença. Troquei de roupa, contrariado. Enquanto esperava Jandira se arrumar, olhava pela janela, com um copo de uísque na mão. Ela veio do quarto falando alto: - Amor, dá para você fechar o cordão pra mim? Gelei. Era o cordão que eu dei de aniversário à Norma. Jandira suspendeu o cabelo, deu uma risada debochada e sacudiu o ombro levemente. - Anda, homem! Fecha logo. Parece que viu um fantasma!? - Jandira, eu conheço esse cordão. Ela riu, olhando pra mim, com ar vitorioso: - As passagens estão dentro da minha bolsa. Sua mala está pronta. Vamos? “Filha da puta de Jandira!” Nota do Editor: Celamar Maione é radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador, mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.
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