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Contos
01/09/2008 - 13h02
Calcinha da discórdia
Celamar Maione
 

Terça-feira, dez e meia da noite. Heloísa passa pela sala em direção a área de serviço, quando André Henrique dá um grito:
- Heloísa!
- Ai meu Deus, que susto. Quer me matar?
- Por que você está com as mãos fechadas? O que você tá escondendo?
- Não é nada. Deixa de ser curioso – e deu uma risada sem graça.
- Mostra.
- Já disse, não é nada.
- E por que não posso ver? Que mistério é esse?
- O que você acha que tenho nas mãos? Uma bomba?
- Não disfarça com piadinha. Abre a mão, anda.
- Que baixaria, agora que não mostro mesmo.
- Você tem andado muito estranha. Vou me aborrecer e a gente vai brigar por besteira. Abre essa mão, anda.
- Quem está brigando por besteira é você. Cisma boba.
- Se é cisma, mostra. Quero ver.

Contrariada, Heloísa obedece. André Henrique enruga a testa e aperta os olhos.
- Que calcinha é essa?
- Minha. De quem mais pode ser?
- Nunca vi essa branca de rendinha e cavada ainda por cima.
- Comprei hoje.
- Tá molhada. Você lavou. Compra calcinha suja agora?
- Lavei pra usar limpinha com você, mas depois desse show perdi o tesão.
- Lavando calcinha nova? Não me enrola. Tenho cara de palhaço?
- Essa é boa. Além de controlar o horário que eu chego em casa, vai controlar também a lavagem das minhas calcinhas?
- Sou seu marido.
- Ser meu marido não lhe dá o direito de controlar minhas roupas íntimas.
- Tenho que tomar conta do que é meu.
- O seu ciúme estraga tudo, sabia? Não adianta querer agradar.
- Você nunca quis me agradar, Heloísa.
- Quanta ingratidão! E no dia que eu almocei na casa da sua mãe e ela fez galinha assada? Você sabe que eu detesto. Mas comi pra te agradar.
- Não mete mãe no meio. Tô falando de mim.
- Ué, mas agradar sogra é a mesma coisa que agradar marido.
- Tá ficando sonsa? Estou falando de nós dois. De sexo.
- Qual o problema?
- Você tem deixado a desejar. Parece um robô na cama.
- Ah é? Engraçado, você nunca reclamou do robozinho aqui.
- Você não é a mesma. Quando a gente acaba de transar, você vira para o lado e dorme.
- Tenho andado cansada. Muito trabalho.
- Isso não é motivo. Sexo é bom pra relaxar.
- Conversamos mais tarde sobre a nossa vida sexual. Deixa eu colocar minha calcinha pra secar.
- Me dá a calcinha, anda.
- Não. É minha.
- Me dá, Heloísa, deixa de ser infantil.
- Infantil é você.
- Me dá essa merda aqui.
- Não dou.

Começam a gritar. Ele puxa de um lado. Ela do outro.
- André Henrique, os vizinhos vão botar nosso nome no livro!
- Se você me der a calcinha a discussão acaba.
- Larga.

André Henrique arranca a calcinha da mão de Heloísa e cheira.
- Essa calcinha não é nova. Tá cheirando a homem. Tá saindo com quem?
- Pára de colocar merda na cabeça. Eu não tenho ninguém. Me dá a calcinha.
- Se eu não devolver o que vai acontecer?
- Experimenta não devolver.
- Vai me bater? Tá muito cheia de valentia. Muito cheia de nhenhenhém.
- Tudo por causa de uma calcinha nova! Não acredito. Seu ciúme passou dos limites.
- É? Essa você não usa mais. Detesto calcinha branca.

E jogou pela janela.
- Sabia que custou dinheiro?
- Eu pago. Quanto foi?
- Você é paranóico. Hoje joga a calcinha, amanhã pode me jogar.
- Não seja dramática. Acabou a discussão. Boa noite.

André Henrique vai para o quarto resmungando. Heloísa chega na janela e vê um homem olhando pra cima. Envergonhada, esconde-se. Dois minutos depois, o interfone toca.
- Dona Heloísa, é o Raimundo. Tem um moço aqui na portaria querendo falar com a senhora. Posso mandar subir?
- Não! Vou descer.

Chega na portaria e encontra um homem alto, elegante, cabelos pretos, olhos esverdeados, boca carnuda e um sorriso de capa de revista. Sem jeito, fala baixinho:
- Boa noite, o senhor deseja falar comigo?

O desconhecido estica a mão e se apresenta. Em seguida, tira a calcinha do bolso da jaqueta de couro e entrega a Heloísa:
- Acho que caiu do seu apartamento. É sua?

Ela estica a mão intimidada.
- Caiu na sua cabeça? Desculpe, não tive a intenção.
- Não precisa se desculpar. Adorei o encontro inusitado. Sou um homem de sorte. Você é muito bonita.
- Obrigada – responde com modéstia.
- Estarei sendo ousado se lhe pedir o número do seu telefone? – disse com voz rouca e sensual.
- Serve o celular?

Ela volta para o apartamento com um sorriso de felicidade nos lábios. Entra e vai direto para a cozinha esconder a calcinha atrás da geladeira. Deita-se devagar para não acordar o marido. Estremece quando escuta a voz de André Henrique:
- Quem era no interfone?
- O Raimundo pra avisar que você deixou o farol do carro aceso.
- Apagou?
- Apaguei.
- Ah tá! Boa noite.


Nota do Editor: Celamar Maione é radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.

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