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Contos
04/08/2008 - 11h10
Recordações juvenis
Celamar Maione
 

O quarto cheirava a éter. Coloquei as pílulas enfileiradas em cima da mesinha de cabeceira e dei a última colher de sopa para mamãe. Antes de voltar pra sala, ajudei-a a deitar-se, fechei as cortinas e encostei a porta. Passava das nove quando me recostei no sofá e estiquei as pernas. Fechei os olhos enquanto esperava pela enfermeira. As imagens de quando eu tinha doze anos me vieram à mente. Foi quando aconteceu a maior decepção da minha vida. Meu pai saiu para procurar emprego e nunca mais deu notícias. Dois dias depois, mamãe gritava pela vizinhança:
- O Edvaldo fugiu de casa! Quem vai cuidar das crianças agora? Se eu encontro esse desgraçado, eu mato.

Lembro que eu ia atrás dela pela vila, enquanto minha irmã chorava na porta de casa. Eu estava envergonhado com a atitude de mamãe e implorava para ela acabar com o espetáculo. Não sei se fazia para me provocar, e gritava mais alto:
- Eu quero que todo mundo saiba que o Edvaldo é um calhorda!

Meu pai nunca mais deu sinal de vida. Durante anos, eu e minha irmã escutávamos a ladainha materna quando chegávamos do colégio. Eu tentava consolá-la:
- Fica assim não, mãe, quando a senhora menos esperar papai entra por aquela porta.
- Aquele vagabundo não volta mais. Tem outra mulher.
- Não fala assim do papai, deve ter acontecido alguma coisa. Vai ver morreu atropelado.
- E gente ruim morre? Ele foi atrás de alguma xoxota que deve dar boa vida pra ele.

Não tínhamos diálogo. Cedo aprendi que dentro de cada um existe um dono da verdade, capaz de destruir o outro facilmente. Deus também não gosta de ser contrariado. Além de discriminar adolescente abandonado pelo pai, ele se vinga de quem ousa duvidar da sua existência. Nunca atendeu um pedido meu. Quando eu entrava na igreja com minha irmã e minha mãe, os fiéis faziam cara de nojo. No colégio, os meninos implicavam comigo:
- Cadê seu pai, voz de mulherzinha?
- Não sei. Deve ter morrido.
- Morrido? Você é tão mariquinha cara, que seu pai foi embora porque tinha vergonha de você.

Foi duro descobrir que adolescentes também são cruéis quando querem. Aos poucos me afastei dos coleguinhas e me enturmei com as meninas. Elas gostavam de mim. Principalmente porque eu deixava elas me pintarem e colocarem brincos. Sempre fui fascinado por bugigangas. Menina tem glamour. Menino é muito sem graça, só quer saber de brigar e de jogar bola. Detesto cair e ralar os joelhos.

Quando chegava do colégio e minha mãe não estava, ia para o quarto dela e passava as tardes desfilando pela sala com as roupas de festa que encontrava no armário. Um dia mamãe chegou mais cedo do trabalho e me flagrou em frente ao espelho fazendo pose. Levei uma surra tão grande que no dia seguinte não podia sentar direito. Passei a aula gemendo. Naquele dia não quis brincar com as meninas. Voltei pra casa mais cedo.

Assim que fechei a porta, a campainha tocou. Era o carteiro me pedindo um copo de água. Deixei-o esperando na sala. Quando voltei, ele estava todo á vontade no sofá, me convidou para sentar perto dele e começou a me acariciar. Correspondi. De repente ele deu um pulo e saiu prometendo voltar no dia seguinte. Esperei durante uma semana, ansioso. Me masturbava pensando no episódio do sofá. Quando ele apareceu, meu coração disparou. Sem dizer uma palavra, me carregou para o quarto, me jogou na cama e me possuiu, quase uivando.

Quando foi embora, entrei no banheiro e vomitei até as tripas. Chorei muito pensando na vida infeliz da minha mãe. Achei que ela não merecia um filho viado, mas não conseguia resistir às investidas do carteiro. Recebia-o com uma excitação juvenil. Um dia, não voltou mais. Os vizinhos comentaram que ele havia sido preso. Passei a brincar com as meninas, enquanto assediava os meninos. Minha mãe desconfiava que eu era diferente, mas não questionava.

Quando completei vinte anos, entrei para a faculdade e assumi meu lado feminino. Minha irmã descobriu que eu gostava de homens e nunca me condenou. Dizia que o importante era ser feliz. Não estranhei quando ela foi morar com uma mulher em outro estado. Fiquei sozinho com minha mãe. Ela nunca esqueceu meu pai. Às vezes eu a pegava chorando, enquanto olhava as fotos dele. Meu coração se entristecia. Prometi nunca abandoná-la.

Quando ela teve o primeiro AVC estávamos na sala vendo um filme com a Audrey Hepburn. Agora, entrevada, em cima de uma cama, fico com ela durante o dia. À noite, pago uma enfermeira, enquanto trabalho. O latido do cachorro me fez voltar à realidade. Olhei o relógio: dez e vinte. “Cadê a enfermeira?” A campainha tocou. Nora entrou, ofegante, pedindo desculpas pelo atraso. Deixei–a no quarto com mamãe e fui me vestir.

Coloquei minhas botas pretas de cano longo, vestido mini, laranja, com um decote em V e escolhi cuidadosamente uma peruca preta, que me dava um certo ar de mistério. Os brincos grandes e dourados completaram meu visual trash. Ajeitei as botas e saí apressado.

Estacionei o carro numa rua deserta. Caminhava balançando o corpo, quando um carrão preto parou do meu lado. Um homem de cabelos grisalhos e rosto redondo perguntou quanto era o programa. Combinamos o preço. Entrei no carro e perguntei se era casado. Respondeu sorridente que tinha dois filhos e quatro netos.

Enquanto o veículo tomava velocidade, me concentrei. Conferi discretamente se o punhal estava na bota. Minha garganta ressecou e meu coração disparou. Desafivelei o cinto de segurança, peguei o punhal e coloquei no pescoço do coroa. Ordenei que parasse o carro. Ele me olhou apavorado e ofegante. Minha adrenalina foi a mil.


Nota do Editor: Celamar Maione é radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador, mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.

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