Nasci escritor. Minha vocação criou-me algumas dificuldades. Quando adolescente, enquanto a professora de matemática explicava trigonometria, eu voava em pensamento até a mesa da menina de rabo-de-cavalo. Imaginava minha colega de classe transformada numa famosa bailarina. Na minha mente criativa meu professor de física era um ex-presidiário pedófilo. Já minha professora de matemática era assassinada por um serial killer. Nunca fui normal. Enquanto meus colegas jogavam bola, eu ficava no banco de reservas observando a reação das pessoas. Levei muita bronca da minha mãe. Ela reclamava que eu vivia no mundo da lua. A situação piorou quando num domingo visitávamos meus avós, e vovô perguntou à netalhada o que seríamos quando crescêssemos. Meu primo mais velho, todo orgulhoso, respondeu que seria engenheiro. Minha priminha de dez anos queria fazer veterinária e meu primo do meio sonhava com a medicina. Fiquei na minha. Calado. Até lembrarem da minha existência. - E você Luciano? O que vai ser quando crescer? - Escritor. Os adultos franziram a testa. Meus primos me olharam como se eu fosse um fantasma e minha tia feiosa caiu na gargalhada. Debochada, comentou com mamãe: - Juracy, seu filho quer ser artista. Fiquei aborrecido e expliquei: - Artista, não. Escritor. Minha mãe se levantou da mesa, irritada. - Ele vai é estudar matemática para a prova de amanhã. Se tirar nota baixa vai ver o escritor no chinelo. Isso é o que ele vai ver. Repeti o último ano duas vezes. Eu e a matemática nunca nos entendemos. Fingia para mamãe que estudava. Geralmente colocava um Machado de Assis debaixo do livro de álgebra. Com 16 anos, comecei a rabiscar uns poemas para as garotas bonitas do meu prédio. Meu tesão poético acabou quando vi meu porteiro escrevendo. - E aí Marcílio? Fazendo contas? - Não. Tô acabando uma poesia para a Janaína. Desisti de ser poeta, mas a vocação de escritor me persegue. É um vício. Sou inspirado vinte e quatro horas por dia. Mas como na vida nada é perfeito, para agradar minha mãe, me tornei doutor. Devo dizer que sou um péssimo advogado. Ainda por cima cometi a loucura de me casar com Leonora, uma compulsiva ambiciosa. O casamento durou um ano. Levei um pé na bunda. Fui acusado de ser acomodado, sonhador e nada original: - Vê se pode, escritor! Escrever é igual a falar. Todo mundo fala. Todo mundo escreve. Voltei para a casa dos meus pais. Para minha surpresa, meu pai me confessou que era um escritor enrustido e ajudaria a realizar meu sonho. Me indicou a um amigo, dono de uma pequena editora. O aspecto da editora não era dos melhores. O editor, um velho barrigudo, de óculos na ponta do nariz, era um grosseirão. Fazer o quê? Foi o que apareceu. O cara conhecia o caminho das pedras. - Trouxe o livro? - Livro? - Porra, seu pai me falou que você é escritor. Cadê o livro? - Ainda não escrevi. Tá na cabeça. - Então você tem dois meses para tirar o livro da cabeça e trazer aqui. É sobre o quê? - Uma tragédia shakesperiana. O editor caiu na gargalhada. E gritou para o boy: - Carnegão, você compraria um livro de tragédia shakesperiana? - Compraria não senhor. - Tá vendo? Arruma outra idéia. Que tal contar a história de uma prostituta? - Prostituta? - Sexo vende. Volta daqui a dois meses com a história de uma prostituta. Antes de sair, olhei um livro em cima da mesa e li em voz alta: - "Como ganhar dinheiro fácil e ser feliz no sexo". - Esse livro vai tirar a editora da lama. O pessoal só quer saber de sexo, dinheiro e poder. O resto é supérfluo. Leva esse pra você. Aprende. Precisava colher material para o meu primeiro livro. Fui para a zona do baixo meretrício. Entrevistei várias prostitutas. A maioria com a mesma história: veio do nordeste e foi abandonada pelo marido. Depois de tanta andança, conheci Indaiara. Uma morena de traços ciganos, falante, simpática e corpo violão. Saiu de um confortável apartamento em Ipanema, onde morava com os pais, para se prostituir. Adora sexo. Passei uma semana entrevistando Indaiara: uma mulher incrível, inteligente e bem humorada. Terminei a história e fui direto no editor. Ele olhou e falou o nome do livro em voz alta: - "A história de Indaiara" Carnegão, você compraria um livro com esse nome? - Compraria não senhor. - Sinto muito, com todo respeito, vou mudar o nome para "Profissão prostituta". - Mas... - Tá decidido. Esse negócio de "A história de Indaiara" parece documentário indígena. Não vende. O livro ficou pronto. Indaiara virou celebridade. Foi entrevistada em programa de televisão e recebeu convite para posar nua. Meu livro foi no embalo. O coquetel de lançamento foi badaladíssimo. Com direito a farta distribuição de camisinha e à presença de Indaiara e suas colegas de trabalho. Meu editor ria á toa. - Não disse que faria sucesso?! Fui obrigado a concordar com aquele porco falante. No meio do coquetel, saí de fininho. Caminhava distraído quando escutei a voz de Indaiara: - Já vai? - É. - Quer carona? Tô com um carro novinho aí fora. Podíamos esticar, o que você acha? - Tô liso. - Cortesia da casa. Só faço questão do autógrafo. No bumbum. A morena riu de um jeito tão intenso, que não tive como recusar. Enquanto caminhávamos em direção ao carro, já pensava num tema para o próximo livro. Nota do Editor: Celamar Maione é radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador, mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.
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