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Contos
14/11/2007 - 15h13
O enterro do Vasconcelos
Celamar Maione
 

Silvinha sai da cama contrariada.
- Quando é que você vai pra Campos?
- Amanhã cedo. Volto sexta.
- Sexta? Que horas?
- Final da tarde.

Ela respira fundo, aperta os lábios e passa a mão pela boca.
- Vai direto para casa ou passa aqui antes?
- Vou pra casa. Sábado é aniversário do mais velho.
- Não agüento mais essa vida de amante, Vasconcelos!
- Isso vai acabar. Mais cedo do que imagina. Vou resolver nossa vida.
- Resolve mesmo. Seu filho está com 8 anos e eu quero que ele cresça com uma família normal. Não agüento o papo de sempre que vai resolver e nada.

Silvinha e Vasconcelos eram amantes há 10 anos. Ele sempre prometendo a separação. Enquanto não cumpre o prometido, se reveza entre as duas famílias. Silvinha, a outra e Edinéia, a oficial, com quem tem dois filhos. Há seis meses Silvinha vêm pressionando Vasconcelos insistentemente.
- Se você não se separar até o final do ano, sumo no mundo com seu filho.
- Vou resolver, já disse. Mais cedo do que imagina. Tenha paciência.

Vasconcelos beijou Silvinha na boca para que ela não falasse mais. Transaram como da primeira vez. Na hora da despedida, Silvinha demonstra temor.
- Estou com um pressentimento estranho. Você vai de carro ou de ônibus?
- Vou de ônibus. Não posso dirigir. As tonteiras voltaram.
- Amo você, Vasconcelos. Sei que você é um sacana indeciso, mas o amo. Sentirei saudade.
- Deixa de bobagem. Campos é aqui do lado. Logo estarei de volta. Mesmo contra a vontade de Deus, lhe garanto.

Silvinha arrepiou-se.
- Nossa, não fale desse jeito, fico com medo!

Assim que o amante bateu a porta, Silvinha sentiu uma pontada no coração. Ligou a televisão para se distrair. Durante a noite, teve um pesadelo com um ônibus rolando um barranco. Acordou suando. No dia seguinte, Vasconcelos ligou para ela do celular.
- Daqui a pouco o ônibus sai. O que você tem? Está estranha.
- Não viaja Vasconcelos. Tenho mau pressentimento. Já disse.
- Deixa de bobagem. Essa viagem é importante. Nada vai nos separar.

Se despediram.
- Preciso desligar. Juízo.
- Amo você. Desliga, vai.
- Não, desliga você primeiro.

Silvinha desligou, chorando. À tarde recebe a notícia do acidente. O ônibus de Vasconcelos caiu numa ribanceira e pegou fogo. Não há sobreviventes. A irmã de Silvinha é quem dá a notícia:
- Você tem que ser forte. Seu filho não pode perceber nada.
- Vou contar para ele. Vou ao enterro do Vasconcelos e ele vai comigo.
- Enlouqueceu? A mulher dele está no cemitério.
- Não interessa. Quero ver o Vasconcelos pela última vez.
 
Quando chega ao velório, o ar misterioso de Silvinha chama a atenção.
- Quem é essa mulher de preto com essa criança pela mão?
- Acho que é a amante do Vasconcelos.
- A Edinéia sabe?
- Claro. Finge-se de morta. Qual a mulher que não sabe que está sendo traída?

O burburinho começa. Edinéia aproxima-se de Silvinha com o coração aos pulos.
- De onde você conhece o Vasconcelos?
Silvinha tira os óculos escuros, assoa o nariz e olha nos olhos da rival.
- Sou a amante do Vasconcelos e este é Carlinhos, nosso filho.
Edinéia muda de cor, jamais imaginou tamanha petulância. Grita, furiosa:
- Tirem essa vagabunda mentirosa daqui. Já não me basta a morte do pai dos meus filhos e vem essazinha dizer que é amante do MEU MARIDO, e ainda por cima puxando um bastardinho pela mão?

Silvinha preveniu-se. Pegou as fotos dela com Vasconcelos e mostrou no velório.
- Vejam. Meu amante. Sou a mulher que ele amava. Sabe por que ele não se separou? PENA! Ele tinha pena dessazinha aqui.

Fala e aponta para Edinéia, com ar de desprezo. Carlinhos puxa a mãe pelo vestido gritando:
- Cadê meu pai? Quero ver meu pai morto. Nunca vi gente morta. Porque o caixão tá fechado? Quero ver meu pai!

Edinéia espumava de raiva. Revirava os olhos, se arranhava e agredia Silvinha com palavras, fulminando-a com um olhar de mulher traída.
- Tirem essa piranha daqui! Vagabunda! Rasteira! O Vasconcelos é MEU marido. Pai dos MEUS FILHOS!
- E é pai do meu filho também. O homem que eu amava e que me fazia gozar gostoso!

Silvinha enfia os dedos pela cara de Edinéia.
- Gozava três, quatro, cinco vezes com ele. Às vezes orgasmos múltiplos. E ele me dizia que mulher nenhuma fazia ele gozar gostoso, como eu o fazia gozar.
Edinéia estremecia, trincava os dentes e andava de um lado para o outro com as mãos na cabeça.
- Filho da puta! Nunca gozei com ele! Abre o caixão. Vou matar o Vasconcelos!

Carlinhos, na sua ingenuidade de criança, faz Edinéia espernear de ódio.
- Precisa não moça, ele já tá morto!
O irmão de Vasconcelos se aproxima de Silvinha.
- Vai embora, por favor. A nossa dor é grande. Depois do enterro eu procuro por você e a gente acerta.
- Acertar o quê? Vou ficar para o enterro! Ninguém me tira daqui. Se tocarem em mim ou no meu filho, chamo a polícia.
 
Dois sobrinhos de Vasconcelos comentam, baixinho:
- Caraca, titio era taradão! Até que a amante dele é bem gostosinha.
O cortejo fúnebre saiu ás 5 da tarde. Silvinha voltou para casa no início da noite. Estava exausta, confusa e deprimida. Sentiu-se só. Teve medo. Carlinhos foi o primeiro a entrar em casa. O menino correu para o quarto dela e voltou gritando, eufórico:
- Mãe, mãe, papai tá vivo ! Papai tá lá no quarto dormindo.
O coração de Silvinha acelera. Uma corrente de ar passa pela porta. O jarro que estava em cima da mesa cai. Engoliu em seco.
- Seu pai tá morto Carlinhos!
- Não tá mãe, vem ver!

Puxou a mãe pelos braços. Silvinha acendeu a luz e viu Vasconcelos deitado na cama, dormindo. Ficou confusa. Não sabia mais o que era real. Sentiu-se num pesadelo. Tinha medo de mortos. Desde criança era assim: via espíritos. Já ouvira falar de mortos que voltavam para se vingar. "Sim" - pensava - "Vasconcelos queria se vingar dela porque fora ao enterro".

Enquanto o garoto acorda Vasconcelos, Silvinha vai até a cozinha e volta armada com um facão. Segurando o facão com as duas mãos, ataca o amante.
- Vou matar você! Volta para o inferno! Você não vai me assustar, não! Veio me infernizar só porque sabe que tenho medo de alma penada? Quer se vingar?

Vasconcelos acorda e vê Silvinha por cima dele. Tenta se defender, explicar. Tarde demais. É atingido com três facadas no peito. Silvinha só toma consciência do que fez quando o sangue espirra nos olhos dela. Ouve, então, os gritos de Carlinhos, ao longe. Em meio ao desespero, aponta a faca para o próprio peito.


Nota do Editor: Celamar Maione é radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi e atualmente trabalha na Nova Brasil FM. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.

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