Célio enxugava as lágrimas no enterro do único tio. Chovia muito naquela tarde de outono. A capela onde estava sendo velado o corpo de Tio Hermínio, no Cemitério do Caju, se enchia cada vez mais. Ele era muito conhecido no bairro de São Cristóvão, onde tinha uma padaria. Os clientes adoravam Hermínio. Costumava vender fiado e estava sempre de bom-humor. A morte foi violenta. Assalto. Dois homens armados entraram, no início da manhã de terça-feira, no estabelecimento e anunciaram o assalto. Herminio reagiu e levou dois tiros. Morreu na hora. Célio já não agüentava mais aquela multidão chegando para prestar a última homenagem ao tio. Meio claustrofóbico, começou a sentir falta de ar. Resolveu sair da capela e dar uma volta pelo cemitério. Tinha essa mania. Sempre que ia a algum enterro, visitava túmulos, procurava sempre o túmulo de gente famosa, ou então de alguém com o mesmo sobrenome e pensava: - Esse deve ser parente. Será que é primo? Tio? A morte exercia um certo fascínio em Célio. Era um solitário por natureza, tinha 30 anos, professor de inglês, solteiro e fã de Edgard Alan Poe, Lord Byron e Álvares de Azevedo. Sua vida era ler compulsivamente esses autores. Lia Byron no original. Ia da casa para o trabalho e do trabalho para a casa. Não tinha amigos e era muito ligado a Tio Hermínio. Os alunos o apelidavam de professor sombrio. Célio andava pelos túmulos com desenvoltura. Ainda faltavam duas horas para o enterro do tio. Já não tinha mais paciência para ficar recebendo condolências e preferiu ficar entre os mortos, meditando. Quando voltava para a capela, onde o tio era velado, ficou curioso com o que viu: na capela D do cemitério do Caju estava sendo velada uma jovem chamada Joana. Adorava esse nome. Resolveu entrar. Só tinha um homem e uma mulher sentados num banco, muito chorosos. Entrou. Aproximou-se do caixão, fez uma prece e ficou fascinado olhando o rosto da morta entre as rosas brancas. Parecia dormir profundamente. "Bela adormecida", pensou Célio. Ele estava fascinado quando o rapaz se aproximou: - O senhor conhecia minha irmã? Ele se assustou. Olhou para o rapaz e respondeu: - Desculpe, você me assustou. Não, não. Estava admirando sua beleza. Era sua irmã? Morreu de quê? Quantos anos tinha? O irmão ficou choroso e respondeu, entre uma fungada e outra: - Jovem ainda. Tinha 21 anos. Começava a vida. Teve leucemia. Queria ser professora de português. Sim, sim, era minha irmã, minha única irmã. Aquela ali sentada é nossa mãe. Mas o senhor conhecia minha irmã? - Na verdade, não. Eu estou na capela ao lado velando o corpo do meu tio. Eu preciso ir. O enterro logo vai sair. Vão encomendar o corpo. Por favor, podia me dar seu telefone? Sem entender nada, o irmão da morta, que se chamava Gilberto, deu seu telefone para Célio. Os dois se abraçaram. Célio partiu. O tio foi enterrado. Célio foi pra casa. Antes, porém, passou pela capela onde estava sendo velado o corpo de Joana. Estava vazia. O coração ficou apertado. Foi embora. Durante uma semana, Célio sonhou com o rosto de Joana no caixão. Acordava de madrugada suando e tremendo todo. Sábado pela manhã, com o telefone do irmão de Joana na mão, resolveu ligar. - Gilberto, aqui é Célio. Lembra de mim? Nos conhecemos no Cemitério do Caju. Sei que não foi numa boa hora. Gilberto interrompeu o outro e disse que lembrava, sim. Célio disse que precisava ir na casa dele. Queria vê-lo, precisavam conversar. Fizeram amizade. Depois das aulas, Célio passava sempre na casa de Gilberto para falar de Joana. Gilberto contava todo o drama da jovem para tentar vencer a doença. Mostrava todas as fotos dela, desde pequena. Até a foto da primeira comunhão. Mostrou uma foto de biquini da jovem em Araruama. Célio pediu: - Posso ficar com essa foto? Gilberto começou a estranhar: - Posso lhe perguntar uma coisa? Que interesse você tem na minha irmã? Ela já morreu. Célio ficou embaraçado, começou a gaguejar, coçou a cabeça e, por fim, confessou: - Sei que você vai estranhar. Pode até pensar que eu sou louco, mas eu não sou louco não. Na verdade nunca nenhuma mulher exerceu tanto fascínio em mim como sua irmã. O outro arregalou os olhos, espantado: - Ela está morta. Você não tem nenhuma chance. Morta, entendeu? Acho melhor você sair da minha casa e não voltar nunca mais. Morta. Ela morreu. Gilberto expulsou Célio da casa. Antes, porém, ele conseguiu roubar uma foto de Joana. Célio nunca mais viu Gilberto. Sonhava todas as noites com Joana. Aos alunos dizia que estava noivo, que ia casar. Mostrou a foto de Joana. Os alunos, que não sabiam que Joana já estava morta, comemoravam, enfim, o desencalhe do professor. Célio ia todo final de semana levar flores ao túmulo de Joana. Passava as tardes de domingo conversando com ela. Duas senhoras que iam ao cemitério visitar o túmulo da irmã viam sempre Célio e comentavam entre si: - Que viúvo dedicado! Deve ter sido o marido mais fiel do mundo. De todos os domingos, Célio passou a ir todos os dias ao cemitério visitar o túmulo de Joana. Dava suas aulas normalmente, depois, ia em direção ao Cemitério do Caju. Chegou a comprar um cachorrinho para dar de presente à amada: - Olha amor, seu irmão disse que você adorava animais. Vamos dar a ele o nome de Lulu? E assim Lulu e Célio eram companheiros assíduos de Cemitério do Caju. Foram dez anos visitando o túmulo da amada. Até que um dia o coveiro encontrou o corpo de Célio esticado em cima do túmulo de Joana. Ao lado, o cachorro Lulu, alheio ao que acontecia, abanava o rabo. Os médicos disseram que Célio morreu de tristeza. A tia respeitou o último pedido de Célio, feito num bilhete deixado em cima da cama. Como última homenagem, enterraram Célio ao lado do túmulo de Joana. Na lápide estava escrito: "Para sempre Joana no meu coração. O grande amor da minha vida e da minha morte. Seu eterno marido". Nota do Editor: Celamar Maione é radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Atualmente, é Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou, recentemente, Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador, mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.
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