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Contos
19/06/2007 - 05h29
Comício das feias
Celamar Maione
 

Marileide acabara de lavar a roupa e passava com a bacia pingando pela sala. A mãe, contrariada, zangou-se com ela:
- Não faz nada direito mesmo! Nem lavar uma roupa sem sujar a casa. Por isso não casou! Tá aí, 30 anos, solteirona. As irmãs encaminhadas e você largada às traças.

Marileide encolheu os ombros, como sempre fazia, enxugou a sala com um pano e foi para o quarto chorar. Vendo que a filha não reagia, Rosileide, continou o discurso sádico:
- Também, como é feia! Feia como um limão chupado! Como essa filha feia pode ter saído de dentro de mim?! Como, meu Deus, me responde?!

Marileide era a filha mais nova de Rosileide. Moravam no Município de Jabuticabeira, uma cidade do interior, com pouco mais de 12 mil habitantes. Marileide sofria desde criança por não atender aos padrões de beleza familiares. Até no colégio era rejeitada pela sua fealdade. Tornou-se uma mulher reservada, mas com uma bomba dentro de si, prestes a explodir.

Certa vez, quando voltava do açougue, cansada de ser humilhada, revoltou-se. Uma revolta que há muito vinha sendo remoída e que piorou com a TPM. O homem da pamonha esgoelava-se na praça, segurando um megafone. Marileide arrancou o megafone das mãos dele e, em seguida, começou a fazer um discurso tirado do nada:
- Cansei de ser chamada de feia. As feias têm um lugar no mundo. Merecemos nosso pedaço de sol. Deus criou as feias. Sinal que servimos para alguma coisa. Quem aqui se acha feia? Sem medo, levanta a mão! Nós, feias, podemos nos organizar contra o império da beleza, contra a ditadura da magreza, do cabelo escovado. Abaixo o silicone! Viva a celulite, as estrias, os culotes, o cabelo crespo!

As palavras de Marileide foram atraindo cada vez mais gente. Hora da saída da escola, as mães e empregadas que passavam com as crianças paravam para prestar atenção no discurso ressentido de Marileide. Recebeu apoio das feiosas. que foram se aproximando:
- É isso aí! Cansei dessa história de só mulher bonita ter vez. Ser feia não é destino, é castigo! Ninguém nasce feia porque quer.

Até Marcia Maria, repórter que fazia uma matéria para uma revista feminina sobre festas juninas no interior, se interessou pelo discurso de Marileide. Empolgada, comentou com o fotógrafo que a acompanhava:
- Essa mulher vai longe. Sabe fazer um discurso convincente. Que oratória! Punhos cerrados, cenho franzido, bem trabalhada, pode ser prefeita desta cidade. Falta um pouco de malícia. Já tenho até o slogan da candidatura: "Para Prefeita, vote na feia".
O fotógrafo, sabendo das idéias esdrúxulas de Marcia Maria, tentou contornar:
- Não inventa. Vamos acabar de tirar as fotos que eu quero voltar para a revista ainda hoje.
- Pois quer saber? Vou ficar e filiar essa feia a um partido, convencê-la a ser prefeita. Serei sua assessora. Chega de revista feminina. Cansei da mesmice de sempre.

Marcia Maria ficou na cidade para conversar com Marileide sobre sua candidatura à prefeitura de Jabuticabeira. Marileide aceitou a sugestão na hora. Precisava de uma distração que lhe levantasse a auto-estima. As duas mulheres passaram noites traçando planos. Se filiaram a um partido. Mostraram um programa. Marileide saiu candidata a prefeita pelo partido de oposição. Seus comícios sempre tinham muitas feias e acabaram também atraindo os feios. Logo, ganhou um trio-elétrico, que rodava pelas ruas da cidade. Em cima do trio, Marileide convocava as pessoas que sentiam-se rejeitadas:
- Você que se acha feio ou feia, rejeitada pelo marido, pelas mulheres, cansou do culto ao belo na televisão, vote em mim! Para prefeita, vote na feia! No país dos mensalões e furacões ser feio não é defeito, é virtude. Mas para os insatisfeitos com a própria feiúra, implantarei cirurgia plástica estética de graça nos hospitais da prefeitura. Gratuidade de transporte para os feios. Abrirei o Clube das Feias com direito a desfile de moda masculina.

Um feio e desdentado, empolgado com a promessa de uma cirurgia plástica, comentou com o colega:
- Será que finalmente vou poder consertar meu nariz de graça?

Marileide enchia a população de promessas. Seus discursos eram concorridos. Marcia Maria ajudava. Consertava uma coisa ou outra, tinha faro, sabia orientar Marileide. Tinha alma de psicóloga, entendia o ser humano, sabia o que as pessoas queriam ouvir. Durante um comício, quando Marileide, com ares filosofais, falou que o feio tinha mais encanto que o belo e que as mulheres feias possuíam muitas vezes encantos que raramente as mulheres belas possuíam, as feias entraram em êxtase. Marileide virou-se para Marcia Maria e perguntou:
- Como é mesmo o nome do artista que disse isso?
- Não foi um artista, foi um filósofo. Não importa o nome. Ninguém conhece mesmo.

Marcia Maria adorava inventar moda. Teve uma outra idéia aprovada com louvor pelos companheiros do partido:
- Temos que causar impacto, mexer com a fé do povo, com a emoção. Sugiro o nome de um santo. Essas coisas dão certo. Em cidade do interior será o maior sucesso. O povo é crédulo. Teremos muitas adesões.
Marileide gostou da idéia e sugeriu:
- Que tal São Jorge? Ele já tem o dragão. Gosto dele, imponente, em cima daquele dragão.
- Isso! São Jorge! Podemos distribuir dragões benzidos e estilizados.

Mandaram confeccionar mais de seis mil dragões. Marileide anunciou a distribuição na rádio da cidade durante propaganda eleitoral:
- Feiosos e feiosas de Jabuticabeira, na sexta-feira estarei na praça da igreja distribuindo dragões benzidos com a presença do Padre Severino de Luca.

A mulherada colocou as mãos para o alto e começou a rezar. Algumas já sentiam orgulho da própria feiúra. Até a mãe de Marileide, que a rejeitava, agora servia de cabo eleitoral.
- Vote em 88, o número da feia - gritava pelos bairros de Jabuticabeira. Veio gente de outras cidades para pegar um dragão benzido. As filas se formaram um dia antes. A população esperou, pacientemente, enfileirada com cadeiras de praia, garrafa térmica e cobertores. Teve quem chegasse ao exagero de levar barraca de acampamento.

Depois do sucesso dos dragões benzidos, houve farta distribuição de camisas e bonés com imagens de Marileide e de São Jorge. Na antevéspera da eleição, a cidade entrou em vigília. Todos rezando, com um retrato do santo nas mãos. A vitória veio fácil. Marileide ganhou com 90 por cento dos votos. Até os maridos votaram nela. Quando tomou posse, a primeira providência de Marileide foi contratar uma cabeleireira da cidade grande:
- Marcia Maria, providencie além da cabeleireira, uma manicure, podóloga, massagista. Ah, sim, e um cirurgião plástico.
- Mas, Marileide, você quer fazer cirurgia?! Foi a sua feiúra que a trouxe até aqui!
- Marcia Maria, não discuta! Vou pagar você para ser minha assessora e não para discutir minhas ordens.

Virou tirana. Mandava e desmandava. Se preocupava apenas com a própria aparência. Uma preocupação paranóica, obsessiva. Contratou um personal. Em um ano, fez lipoaspiração, cirurgia no nariz, colocou silicone nos seios, botox e sempre fazia drenagem linfática. Virou outra pessoa, por dentro e por fora. Vaidosíssima. Gastava o dinheiro da prefeitura com nutricionista, cabeleireira e uma costureira particular.

Os habitantes de Jabuticabeira ficaram em segundo plano. As ruas, idem. Depois de tanta plástica, Marileide transformou-se numa linda mulher. Quando as feias iam até a prefeitura cobrar as promessas feitas durante a campanha, Marileide não as recebia. Pedia a Marcia Maria para dizer que estava ocupada:
- Fale qualquer coisa. Diga que estou ocupada. Chega de feiúra na minha vida! Detesto gente feia. É como dizia aquele poeta, como se chamava mesmo? Ah, Vinícius de Moraes: "as feias que me desculpem, mas beleza é fundamental!".


Nota do Editor: Celamar Maione é radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Atualmente, é Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou, recentemente, Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.

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