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Contos
17/02/2007 - 09h13
A esposa dedicada
Celamar Maione
 

Domingo chuvoso, 11 horas da manhã. Nercina preparava o almoço. Ela e o marido esperavam os pais, sobrinhos e cunhados para comemorarem os 5 anos de casamento. Nercina estava distraída, com a geladeira aberta, quando Genildo passou pela porta da cozinha e falou:

- Tchau. Estou indo embora.

Distraída, Nercina respondeu:

- Vai na rua comprar cerveja? Compra mais refrigerante também. Você sabe que a Cremilda não gosta de cerveja. E ainda tem as crianças. Genildo, ei Genildo.

Não obteve resposta. Pegou um pano de prato, limpou as mãos, e foi até a sala. Só então reparou nas malas:

- Genildo, que malas são essas?

Genildo, que abria a porta de casa, respondeu secamente:

- Não reconhece? São minhas.

- E o que você está fazendo com as suas malas na porta de casa?

- Não ouviu? Me despedi de você! Vou me embora.

- Embora? Que brincadeira é essa?! Daqui a pouco seus pais estão aqui, irmãos, sobrinhos, todo mundo. Vamos comemorar nossos cinco anos de casamento e...

- E nada, Nercina. E nada. Eu disse para você que eu não queria comemoração nenhuma. Eu disse para você que não queria continuar casado. Mas você forçou a barra, fez esse almoço, chamou a família e vai comemorar sozinha, porque eu estou indo embora.

Os olhos de Nercina se encheram de lágrimas. Seu coração disparou. Começou a esfregar uma mão na outra:

- Que brincadeira é essa?! Você está de brincadeira comigo! Não tem graça, você não vai fazer isso comigo na frente da sua família, na frente da minha irmã, dos meus sobrinhos.

- Vou fazer, sim. Já estou fazendo.

Genildo abriu a porta e quando pegava as malas, Nercina voou em cima dele e começou a socá-lo:

- Não vai, não! Entra! Sua casa é aqui! Fecha essa porta!

Começaram a brigar. Genildo empurrava a mulher, que empurrava Genildo e chutava a porta. Genildo se desvencilhou dela. Aproveitou para pegar as malas. Ela, novamente, voou para cima do marido. Dessa vez, agarrou a canela dele. Parecia uma cadela chamando a atenção do dono. Agarrou-se no calcanhar de Genildo gritando alucinada:

- Não vai! Não me deixa! Amo você! Pelo amor de Deus, não faz isso comigo! Eu imploro, eu imploro.

Chorava. Parecia um chafariz. Estava descontrolada.

Genildo empurrava Nercina com o pé:

- Me larga, mulher! Me solta! Deixa eu ir embora. Olha o escândalo. Os vizinhos, o que os vizinhos vão dizer?

Os vizinhos já abriam as portas. Comentavam. Uns com pena, outros querendo interferir. Martinha, a vizinha mais chegada, se aproximou:

- Nercina, não faz isso. Olha o vexame. Depois vocês conversam. Vocês estão de cabeça quente.

Nercina gritava completamente fora de si:

- Nãoooooo! Ele é meu! Não vou deixar ele ir embora para ficar com vagabunda!

Genildo tentava se desvencilhar. A confusão estava formada. Enquanto alguns vizinhos apenas assistiam ao impasse da porta de suas casas, outros tentavam ajudar. Até que alguém falou:

- Cheiro de carne queimada. É a comida queimando.

Martinha entrou em casa para desligar o fogo. Enquanto isso, Nercina, com uma força descomunal, continuava agarrada á canela de Genildo, que pedia ajuda à vizinhança:

- Me ajuda, seu Almeida! Tira essa mulher do meu pé!

- Eu? Tiro não! Em briga de marido e mulher não se mete a colher.

Virou as costas e se foi. Genildo conseguiu tirar as mãos de Nercina. Ela, no chão, com o cabelo desarrumado, gritava e chorava ao mesmo tempo:

- Não vai! Não vai!

Com raiva, Genildo humilhou mais a mulher na frente da vizinhança, que a tudo assistia, como se a briga fosse mais um capítulo de novela:

- Louca! Você é louca varrida! Não quero nunca mais olhar para sua cara. Que vexame!!

A vizinha, Martinha, ajudou Nercina a se recompor. Os vizinhos se dispersaram, comentando. Era o assunto do dia na rua.

Duas horas depois, a família estava toda reunida na casa de Nercina para o almoço que não aconteceu. A mãe de Genildo, com um lencinho na mão, chorava num canto, sem dizer nada. Os pais de Nercina culpavam Genildo:

- Eu falei, minha filha. Eu falei para você não casar com ele. Não presta! Nunca prestou!

O pai de Genildo se doeu. Começou a bater boca com os pais de Nercina. As crianças corriam em volta da casa, alheias a tudo. A irmã de Nercina, Cremilda, alertava:

- Vocês não vão querer brigar também! Daqui a pouco os vizinhos chamam a polícia.

Os ânimos não se acalmavam. De um lado, o pai de Genildo defendia o filho. Do outro, os pais de Nercina acusavam o genro. Nercina permanecia sentada no sofá, olhando para o nada. Estava fora de órbita. Para acabar com a discussão, Cremilda foi até a cozinha, pegou duas panelas, chegou no meio da sala e bateu com uma panela na outra:

- Calma! Vamos nos acalmar. Agora não adianta brigar. Onde é que o Genildo está? Ele disse para aonde ia Nercina?

Nercina não respondeu. Continuava olhando para a televisão desligada. A irmã comentou:

- Pronto. Pirou!

Procuraram por Genildo. Nenhum amigo sabia do paradeiro de Genildo. O celular na caixa-postal.

A família se agitou. Todos á procura de Genildo. Menos Nercina que, sentada no sofá, olhava atentamente para a televisão desligada. Pensava. As brigas que tiveram nas últimas semanas passavam pela cabeça de Nercina. Não era de hoje que Genildo queria abandonar o casamento. Ela tentou de tudo para ficarem juntos. Só restava fazer uma coisa para manter Genildo ao seu lado. Queria o marido de qualquer maneira. Pagava qualquer preço. Queria continuar casada.

Enquanto a família procurava Genildo, Nercina foi até o quarto, pegou a caixa de tranqüilizantes e enfiou tudo garganta abaixo. Deitou na cama e esperou o resultado.

Quem encontrou o vidro de tranqüilizantes jogado na cama ao lado de Nercina foi o sobrinho mais velho, Geninho, de 9 anos. O garoto saiu pela casa gritando com o vidro de tranqüilizantes na mão, enquanto a família estava mobilizada para procurar Genildo:

- A tia Nercina tá dormindo! Tia Nercina tá dormindo! Olha o que eu encontrei, o remédio que a mamãe toma para dormir.

Cremilda pegou da mão do menino:

- Me dá isso aqui. Pelo amor de Deus! Gente, chama uma ambulância, a Nercina se suicidou!

O filho mais novo se agarrou na saia de Cremilda:

- Mãe, tô com fome!

- Agora eu não posso! Não vê que tua tia tá passando mal?

A ambulância chegou. Mais espetáculo para a vizinhança. A casa de número 52 estava comentada naquele domingo no bairro.

Nercina foi para o hospital. Tomou lavagem. Ficou internada de um dia para o outro. No caminho de volta para casa, no carro da irmã, falou:

- Cremilda, se o Genildo não voltar para mim, tento o suicídio novamente.

E tentou mais duas vezes. Queria chamar a atenção de Genildo. Deu certo.

O romance com a amante terminara. Então Genildo voltou para Nercina, mesmo sem amor. Conhecia Nercina e sabia que, pelo menos, ela era boa dona de casa. Durante os 20 anos de casamento ainda teve muitas amantes. Nercina sabia de todas. Quando ela desconfiava que Genildo tinha outra, arrumava as roupas do marido com cuidado. Comprava perfumes novos. Cuidava dele com uma dedicação canina, para deixá-lo impecável para passar ás tardes nos braços da rival.

Martinha, a confidente, questionava o comportamento da vizinha amiga:

- Você sabe de tudo e não faz nada? Toma uma atitude! Acorda!

- Isso é amor. Quando a gente ama, aceita todas as humilhações do mundo.

E assim, encerrava o assunto com olhar de mulher perdida em devaneios.

Quando Genildo ficou doente, contratou os melhores médicos. Cuidou dele, dia e noite. Dava os remédios na hora certa. Pagou até uma empregada para fazer comida e arrumar a casa, enquanto ela se dedicava ao marido doente 24 horas. No momento de sua morte, Nercina segurava-lhe as mãos com força.

No dia do enterro, Nercina, não se constrangeu quando apareceram cinco ex-amantes de Genildo. Duas, inclusive, disseram que ele era pai de seus filhos. Atendeu as rivais com uma educação absurda. Não fez a menor menção de interferir, quando se aproximavam do caixão do falecido. Na hora em que o padre encomendou o corpo, chorou discretamente.

Antes de sair do cemitério, amparada pela fiel amiga Martinha, olhou mais uma vez para a lápide com as inscrições: aqui jaz o melhor marido do mundo. Em cima da sepultura o retrato de Genildo sorria para ela.


Nota do Editor: Celamar Maione é radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Atualmente, é Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou, recentemente, Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador, mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.

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