Sete da manhã. Seu Bertulino, o leiteiro, vem subindo a rua. Seus berros são inconfundíveis. Assim como o som da descarga da caminhonete. As buzinadas, por fim, anunciam sua chegada. A vizinhança sai à rua com panelas e vasilhas. De pijama ou apenas de bermuda. Arrumado para a escola ou ainda descalços. Vai menino, vai senhora. Seu Bertulino todo brincalhão, esbanjando sorriso. Todos acordam felizes. Ou quase todos. Seu Urbano mora no bairro há seis meses. Não conhecia o leiteiro. Antes, trabalhava à noite e só chegava depois das sete. Agora, em outro emprego, acordava com Seu Bertulino. Levantava murmurando. - Não! Não! – rolava pela cama com o travesseiro nos ouvidos – Maria! - Mainha foi pegar o leite. – gritava a filha. Seu Urbano levantava e ia até a porta de casa. A cara ainda inchada, cabelo desarrumado, boca não escovada. A ira consumia-lhe os cabelos pretos: podia-se ver alguns esbranquiçados. Esperava Maria voltar para resmungar. E como reclamava. Até parecia que sua esposa tinha algo a ver com o horário do leiteiro. Irritado, Seu Urbano ia tomar seu banho. E demorava. Escolhia a roupa como se fosse para uma festa. Não pegava qualquer meia nem qualquer blusa. E tomava seu café sozinho, já que a esposa saíra com os filhos para a escola. Seu Bertulino aparecia às sete, dona Maria pegava o leite, Seu Urbano acordava murmurando. Era sempre assim. Até no dia em que o leiteiro não apareceu. Dona Maria e todos os vizinhos estranharam o atraso. Nunca antes havia acontecido. Ela saiu com os meninos, após uma tentativa frustrada de acordar o marido. Os ponteiros corriam. Primeiro dia de atraso de Seu Urbano. O chefe não acreditou. - Mas, Seu Urbano, o senhor? Aconteceu algo com sua família? - Não, senhor. Foi irresponsabilidade minha. E durante uma semana o leiteiro não apareceu. E Seu Urbano saía atrasado. Antes elogiado pela sua equipe – ele era chefe de um setor – pela elegância, agora era motivo de maus comentários pelos corredores da empresa. Às vezes surgia com camisas amassadas e sujas – apesar de isto ter acontecido apenas uma vez. Ninguém sabia onde Seu Bertulino morava. Nem a razão do sumiço. O leite em pó substituía, temporariamente, o outro leite. E Seu Urbano reclamava cada vez mais. - É um folgado! Não trabalhar... A verdade é que ele sentia falta do leiteiro. Não pela amizade, mas pelo favor que ele prestava acordando-o. Seu Urbano demorou a perceber, mas, enfim, percebeu. Nem despertador nem sua mulher eram eficientes em levantá-lo da cama. A vizinhança mudara o hábito. Leite em pó passava a ocupar prateleiras na despensa das donas-de-casa. O barulho que fazia surgir o sorriso da rua não aparecia há um mês. Ninguém sabia o que fazer. Até que Seu Urbano teve uma idéia. Do trabalho, Seu Urbano ligou para a emissora de rádio da cidade. Com voz alterada, ele, com o nome de Robervaldo, falou desesperado do sumiço do leiteiro. Emocionou o locutor, que por pouco não chorou. Com seu jeito único, berrando e buzinando, Seu Bertulino reapareceu dias depois. Parecia igual. Mesmas sandálias, bermuda, o barrigão e o chapéu na cabeça. Falava gritando, esbanjando o sorriso e a boca com poucos dentes. Seu Urbano apareceu na porta, de bermuda e descalço. A cara ainda inchada e os cabelos bagunçados. Desceu a ladeira e foi ao seu encontro. Abraçou-o pela enorme barriga e deu-lhe um beijo no rosto. - Sentimos sua falta. E tudo voltou ao normal.
Nota do Editor: Mateus dos Santos Modesto é jornalista. Veja também em www.mateusmodesto.com.br.
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