Ronivaldo estava diferente. E há muito tempo. Contentava-se em ser glorificado. “Ainda que falasse a língua dos homens e dos anjos, sem superioridade nada seria”, desrespeitava o apóstolo Paulo, olhando-se no espelho. Casado há um bom tempo, pai de três filhos, técnico em contabilidade. Não faz faculdade por indisponibilidade de tempo e insuficiência de recursos financeiros - explicando por suas próprias palavras. Ama o saber. Seu livro de cabeceira é o Aurélio. Divide o horário de almoço com renomados autores, e suas férias são preenchidas com estórias de estrangeiros - já esteve na Alemanha, Holanda, Irlanda e, recentemente, Cuba. Seu orgulho maior não são seus filhos. Pelos seus cálculos, um prêmio de dois milhões, oitocentos e vinte e cinco mil reais conquistado no extinto Show do Milhão. Não que ele tenha ido lá jogar, mas, em frente à televisão, sem auxílio de universitários ou cartas, acertara todas as perguntas. Possuía um vasto conhecimento em todas as áreas. Em quase todas. Das disciplinas do ginásio, tirava de letra. Lia a respeito de Publicidade, Engenharia, Direito, Medicina. Gostava de estar por dentro. E de saber mais que outros - seus filhos e colegas de trabalho. Dedicava-se aos estudos dos meninos, já que não admitia não entender de álgebra ou geografia física. - Mário - perguntava o irmão mais novo ao mais velho –, onde fica o Rio Senna? - Em São Paulo? - Que graça... - ironizava o pai - Na “cidade luz”, Paris, a capital francesa! - O Eufrates? - Ásia! - Nilo? - Onde governou José, Egito! - Tietê? - São Paulo! - gritou o irmão, orgulhoso por saber. Ronivaldo, assim, terminava seu dia maravilhado. Parecia que uma pontuação, ou algo semelhante, subia vertiginosamente, a ponto de alcançar o limite. Dava um sorriso sinistro, indicando-lhe sua soberania. Isso o fazia ser chefe da família. E melhor que outros homens, como numa forma de superioridade em meio à “tribo” - assim como demarcação de território pelos animais. Dia após dia, ele se enfiava em livros didáticos. Minutos de descanso no trabalho eram ocupados com o conhecimento. Seus colegas estavam ressentidos com o desprezo dele. Conseqüentemente, não era mais convidado para os animados churrascos de domingo. Nem para as festinhas sem graça da firma. Ronivaldo percebera. Sua família também. Os meses que se seguiram foram infelizes. Ronivaldo continuava culto, mas seus filhos não solicitavam tanto sua ajuda. As tardes de sábado, antes alegremente tomadas por jogos de teste de conhecimento ou gravações de programas do gênero, não tinham mais paixão. A esposa se dedicava a concursos nacionais de receitas de doces finos. Os amigos não mais ligavam. Coquetel estava sem graça. Ficara só. Não havia mais como se gabar. Sentado debaixo de uma árvore, ele não se incomodava com as formigas. Refletia no que se tornara. Não se lembrava do dia em que tudo mudou. Nem a causa. Não se divertia com os filhos nem namorava mais a esposa. “Desprezado por todos”. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto. - Não posso esconder-me atrás de um livro. Eu era mais feliz no tempo que assassinava a Língua Portuguesa. Curvou a cabeça. E decidiu mudar. No dia seguinte, saiu para passear com a família. Todos estranharam. E mais ainda quando, de tarde, resolveu assistir ao jogo comendo pipoca e sujando a sala. - Mas ele não leu no livro de não-sei-quem que é deselegante isso? – cochichava Mário com a mãe. Fez brigadeiro e raspou a panela com o dedo. À noite, molhou o pão no café e misturou bolacha doce à bebida. Uma esquisitice. E uma delícia. Antes de dormir, leu uma pequena estória ao filho mais novo. No trabalho, todos sentiram a diferença. Nas primeiras semanas, ninguém se atreveu a mudar de postura. Mas perceberam a sinceridade e a volta do velho Val. - Val dizer por aí que você enlouqueceu. - brincou. - Eu já tinha se esquecido de como você era. - Pois é... – ele se segurou para não corrigi-lo - Eu voltei.
Nota do Editor: Mateus dos Santos Modesto é jornalista. Veja também em www.mateusmodesto.com.br.
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