Sábado de pouco sol e muito sono. Sandro tinha a incumbência de levar seus dois filhos para o cabeleireiro. Manhã de muita nuvem e pouco descanso. Julia e Felipe, os pequenos, amavam brincar no salão. Sandro acordou cedo. Melhor, foi acordado muito cedo. Às sete, seus dois filhos já batiam na porta, animando-o para o “evento” de logo mais. O pai ainda não havia dormido o suficiente para esquecer a festinha do dia anterior: 60 anos de sua sogra. Forçado pela sua mulher, ele se divertira no aniversário “supimpa” da velha. ”Uhuuu” e “Maravilha” foram suas únicas palavras durante toda a noite, para todas as perguntas. Marisa, ouvindo a euforia das crianças, apenas “passou o olho” nelas, deu “bom-dia” e voltou a roncar. Sandro não conseguiu fazer o mesmo: Julia grudou em seu pé e Felipe puxava sua coberta. Era o melhor despertador que havia em sua casa. A solução foi tomar um banho gelado para despertar de vez. Tomaram banho, escovaram os dentes, arrumaram-se, tomaram café, escovaram os dentes e foram para o salão. A animação das crianças contagiava a todos que passavam por eles, menos ao pai. Um olho quase fechado e outro quase aberto – não se percebia muito porque ele era descendente de japonês. Mas a sua cabeça – ora inclinando para frente, ora para trás – indicava que sim. No salão, Sandro tratou de pegar uma revista para esconder seu sono. As crianças brincavam de correr. A cada minuto que passava, Julia e Felipe tornavam-se mais agitados, enquanto seu pai mais sonolento. Ele não conseguia mais ficar com o olho aberto. As letras grudavam em seu rosto, e sua baba escorria pelas páginas. - Pai! – chamava-o Felipe. - Anh!? Oi, meu querido... - Veja se eu piso no preto. - “Naonde”??? - No piso preto. Só pode ser no branco. – explicou Julia. - Certo... Julia e Felipe pulavam daqui para lá e de lá para cá. Sandro ficou observando. Tanto pulo lhe deu mais sono. Permanecia com os olhos abertos, mas a mente estava em sua cama. Não assimilava mais nada. - Pisei? – deitado em cima da parte preta. - Não, meu filho... Continue. - Pisei? – foi a vez de Julia. - Quase... E assim os três iam se divertindo. Sandro sonhava com seus travesseiros, Julia e Felipe pulavam os pisos. Um amor de família. - Próximo! – o cabeleireiro apontou para Felipe – Vamos, garotão! - Oi! - O mesmo corte ou quer mudar? - Quero mudar. - Mas tem que pedir ao papai. Tem que ser obediente a ele. - Tudo bem. Correu para o sofá, onde seu pai se encontrava recostado, cochilando. Ele bateu em sua perna, pisou em seu pé e nada. Acordou-o com um berro. - Paaaai! - Oi! – fingindo que nada havia acontecido. - Estava dormindo... - Não, não, não... Acabou? Como ficou lindo! - Não pai. Nem sentei na cadeira ainda. - Que bom! Muito bom. Bom demais. – olhando atordoado, procurando uma resposta – Então? - Posso mudar meu corte? - Pode, claro que sim. Pode, pode, pode... Que horas são? - Dez e meia. - Vou fazer um lanche. Vai lá, vai lá... corta seu cabelo. - Posso cortar igual ao do Beckham na Copa? - Copa? Copa? – perguntando-se o que era Copa – Claro... Claro! – saiu se esbarrando na parede e na porta. Trinta minutos depois ele voltou. O lanche havia reforçado suas energias e estava agora “de pé”. Olhos abertos, sem resquícios de sono, concentrado. Outro homem. Entrou no salão, pegou a filha pelos braços, deu um beijo e foi olhar Felipe. Assustou-se com o corte: era um moicano. Ele pensou em brigar com os dois – o filho e o cabeleireiro – mas sabia que tinha concordado com alguma coisa que não fazia idéia do que era. - Lin-do! – a palavra saiu engasgada. Foram todos para casa. As crianças ainda eufóricas com o novo corte. Sandro pensava em alguma explicação para dar à sua esposa. Formulou qualquer coisa, mas temia uma discussão. “Uma tarefa simples como essa, Sandro, e você não faz direito”, arrepiava-se só de pensar. Chegou em casa e gritou pela esposa. Queria dar logo a surpresa. Ela apareceu. - Gostou? - usou a tática do “eu-que-quis-assim”. Ela ficou analisando. O silêncio indicava irritação. - Fe-Felipe gosto-tou... me-meu amor. - Não estou olhando para o cabelo de Felipe. – olhou nos olhos de Sandro – O que você fez com Julia? Sandro olhou para Julia. Seu longo cabelo agora estava no pescoço. Não se lembrava do momento em que ela havia pedido um novo corte. Ele olhou para Marisa, respirou fundo, engoliu seco, deu um falso sorriso e soltou: - Surpresa!!!
Nota do Editor: Mateus dos Santos Modesto é jornalista. Veja também em www.mateusmodesto.com.br.
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