O Tabelionato de Ofícios estava lotado. Algumas pessoas sentadas e outras tantas em pé. Jorge olhou seu número da senha: 83. O painel eletrônico indicava número 17. Ainda eram dez da manhã. Seria um longo dia. Jorge procurou um pedaço de parede livre. Não havia nenhum. Ficou em pé no meio da sala, parecendo um jarro. Respirou fundo e começou a cantarolar. Dez minutos depois já estava murmurando. Motivo: dos quatro guichês, apenas dois funcionavam. A fila era inversamente proporcional à lentidão do atendimento. Assim, o calor tomou conta do local. Não havia aparelho de ar-condicionado que resolvesse. Jorge respirou fundo novamente. Quando deu meio-dia, o painel indicava o número 38. Havia algo errado, pensava ele. Resolveu esperar do lado de fora. Descansou à sombra de uma árvore. Ali o calor também era enorme. Para se distrair, resolveu olhar a papelada que precisava autenticar. Foi quando percebeu que estava faltando a fotocópia de um documento. Olhou ao redor e viu uma gráfica. Deslocou-se até lá. - Bom dia! Quero dizer, boa tarde! - deu um sorrisinho - Gostaria de... quanto é a cópia? - Quinze. - Quinze o quê? - Centavos. - Nossa! - ficou esperando alguma reação do atendente - Tudo bem. Entregou o documento. Eram doze páginas. Levaria um tempinho. - Enquanto você faz isso, eu vou aqui. - Aqui onde? Jorge parou e ficou refletindo na pergunta do atendente. "Que curiosidade!", pensou. - Vou tomar um sorvete. - Bom, nós vendemos. - O quê? - Sorvete. - Sorvete? - Da marca que o senhor quiser. Temos picolé da fruta também. Picolé caseiro... Mas é com água filtrada. Jorge não creu. Abriu um sorrisinho, que se transformaria em gargalhada se o atendente não tivesse mostrado o "menu". Ele imaginou que fosse piada. - Hummm... Uma gráfica que vende sorvete. Poderia se chamar "Gravete" ou "Sorfica". - iniciou uma risada, mas ficou constrangido com a seriedade do atendente. - Eu vou querer este. - indicou. O atendente se deslocou até o balcão ao lado e retirou do freezer o sorvete escolhido. Enxugou as mãos e continuou com a cópia. Jorge havia achado esquisitice, mas depois elogiou a idéia. "A pessoa vem autenticar o documento. Precisa tirar cópia do documento. Vem aqui, que fica em frente ao tabelionato. Com o calor que a cidade faz, resolve tomar um sorvete. A sorveteria mais próxima é longe. Eles encurtaram a distância!", admirou-se. - De quem foi a idéia? - Qual? - concentrado em seu serviço. - Essa. - Qual? - A de vender picolé aqui. - Meu pai pensou nisso. - Interessante. Deu a primeira mordida no sorvete. Seguida de um grito. Havia mordido a língua. Na segunda mordida, outro grito. Dessa vez foi o dente. - Qual o problema? - preocupou-se o atendente. - Acho que foi meu dente. - Xii... - "Xii" o quê? - Jorge arregalou os olhos. - Dente sensível. Jorge se espantou com a precisão do atendente. Ele nem sabia como e onde foi a dor. Seria apenas uma suposição, imaginou ele. - Você tem dentes sensíveis. - continuou o atendente - Não consegue tomar coisas quentes ou frias sem que isso pareça uma "tortura". Jorge ficou triste. Ele estava certo. Olhou para o sorvete, que já derretia em sua mão. Relembrou os momentos que indicavam a sensibilidade nos dentes. Passou a mão na cabeça e a coçou. Mais gastos com dentista. - É, preciso ir para um dentista. - Está no lugar certo. - Quê? - arregalou os olhos novamente. - Temos um consultório odontológico no fundo do corredor. Basta o senhor preencher esta ficha aqui para uma rápida consulta. Ele se espantou. Saiu para olhar o que estava escrito na fachada. O estabelecimento tinha três entradas. Em cada uma, havia uma pequena placa: Nunes Andrade Gráfica; Nunes Andrade Sorveteria; Nunes Andrade - Cirurgião Dentista. - Por pouco não entro em um shopping. - Bom, se o senhor estiver procurando blusas, eu posso ajudar... - piscou o olho direito e abriu um sorrisinho.
Nota do Editor: Mateus dos Santos Modesto é jornalista. Veja também em www.mateusmodesto.com.br.
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