Aloísio apareceu sem fazer barulho. Retirou as outras chaves do chaveiro e colocou-as no bolso. Tirou os sapatos e entrou de meias em casa. Respirou baixinho, e, em alguns momentos, prendeu o ar. Trancou a porta e passou o ferrolho bem lentamente. Sempre que Aloísio chega tarde da noite, por causa do trabalho, sua esposa acredita que ele a estava traindo. E é uma grande discussão, não se respeitando os decibéis e a madrugada. Mas ele sempre prova que ela está enganada. Para isso, é necessário ligar para todos os seus colegas, inclusive para o chefe. E no outro dia, é a maior gozação. Ele precisava evitar tudo isso. Olhou para a sala. Escuridão total. Ficou rememorando a posição do sofá, dos brinquedos das crianças, da mesinha, de algum sapato da mulher... Curvou-se uns trinta graus e não tateou nada. Abaixou-se mais e tocou o sofá. “Se ele está aqui, mais a oeste deve estar a mesinha. A um metro, o caminhão de João”, pensou. Deu um passo e a dor foi na canela. Enganara-se quanto à posição da mesinha: ela estava mais a leste. Deu um grito inaudível. Contorceu-se por uns minutos. Decidiu ser mais cuidadoso. Ajoelhou e andou tateando o chão. Encontrou o caminhão e o carrinho de João. Mas não contava com Lico, o bonequinho do pequeno Lucas. Apertou e ele emitiu um som. Aloísio ficou estático. Clamou para que ninguém acordasse. Ninguém levantou. Respirou aliviado. Andou um pouco mais e bateu com a cabeça na outra mesa. Tudo isso para não ligar a luz e acordar a família. Engatinhou até a cozinha. Fechou a porta e ligou a luz. Foi à geladeira, tirou a jarra de água, o requeijão cremoso e o leite integral. Ligou a cafeteira. Arrumou a mesa com pães, biscoitos e bolo. Voltou à geladeira e trocou o leite integral pelo desnatado. Fez seu lanche noturno, arrumou tudo e lavou os pratos. Deu um arroto de satisfação. Desligou a luz e abriu a porta cuidadosamente. Ajoelhou-se. Andou deitado feito um soldado e foi até o banheiro. Bateu a porta. Ficou receoso em ligar a luz – havia uma janelinha entre o banheiro da sala e o seu: podia refletir no quarto. Sentou-se no vaso. Mas fora alarme falso. Lavou as mãos e saiu. Parou defronte ao quarto. Abriu vagarosamente a porta e entrou na ponta dos pés. Fechou a porta, tirou a roupa. Lembrou-se que não podia tomar banho ali. Ela poderia acordar. Saiu e foi até o outro banheiro. Não ligou a luz. Lavou o corpo com um sabonete dermatológico e o cabelo com um sabonete líquido feminino – e íntimo – e com um lavador de calcinhas. Enxugou-se com a toalha de rosto. Saiu do banheiro. Entrou no quarto, abriu o guarda-roupa, a gaveta e ficou tateando uma cueca. Pegou qualquer uma. Vestiu pelo avesso. Andou até a cama. Sentou-se do lado direito e se deitou. Mas não se lembrou que sua esposa é espaçosa e geralmente ocupa toda a cama quando sozinha – esmagou seu braço. Ela acordou de susto. E gritou de medo. João levantou e chamou pela mãe. O pequeno Lucas acordou e abriu o berreiro. A empregada veio com um martelo de bater carne em uma mão e com o rolo de macarrão na outra. Até os vizinhos ouviram, ligaram as luzes e abriram as janelas. Aloísio respirou fundo, frustrado. De nada adiantara ser tão cuidadoso.
Nota do Editor: Mateus dos Santos Modesto é jornalista. Veja também em www.mateusmodesto.com.br.
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