Em 1989 a campanha presidencial começou prometendo muita luta, havia nomes de peso entre os candidatos, nomes tradicionais como Leonel Brizola, Aureliano Chaves, Ulisses Guimarães, Paulo Maluf e Mário Covas, citando os de maior experiência. Havia também novatos e dentre estes, dois despontavam. O primeiro era Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do PT, partido de esquerda que mobilizava a classe trabalhadora e estudantil e crescia de forma impressionante no país. Lula, ex-metalúrgico e ex-sindicalista, tinha um enorme carisma e era assessorado por intelectuais da melhor lavra. Sua presença provocava emoções contraditórias, medo em alguns e esperança em outros. Ninguém lhe era indiferente, como acontece com os grandes políticos. O outro novato era governador de Alagoas e tinha a política entranhada na cultura familiar. Fernando Collor de Mello era jovem, bem apessoado a ponto de parecer-se com os astros das novelas da televisão, dono de grande magnetismo pessoal e considerado confiável pelos donos do poder. Em pouco tempo tornou-se o candidato preferido da classe média. No princípio da campanha televisiva, em agosto, as primeiras pesquisas causaram uma grande surpresa, um candidato que não tinha tradição na política nacional aparecia em primeiro lugar. Seu nome: Guilherme Afif Domingos. Deputado Federal, bem apessoado, comedido, prudente, educado e empresário de sucesso, agradou à maioria silenciosa bem-comportada e cheia de medos. Com um discurso desenvolvimentista coerente, tornou-se o sobrinho preferido das tias e o neto desejado das avós. Os políticos experientes bem como seus marqueteiros interpretaram o fato como fenômeno passageiro, logo os outros candidatos com mais bagagem ocupariam o lugar que lhes pertencia por direito. As semanas foram passando e Afif teimava em continuar na liderança, se a carruagem continuasse nessa marcha ele poderia começar a receber adesões e com o aumento dos afluentes o rio ganharia dimensão. Era preciso fazer alguma coisa. Devo me situar nessa fase da história recente do país, quando tive a oportunidade de ser agente atuante. Eu trabalhava na campanha de Mário Covas do PSDB como diretor de arte do programa televisivo, meu chefe era o jornalista Woile Guimarães, recém-saído da Rede Globo. Depois de exaustivas reuniões, chegou-se à conclusão de que algo poderia ser feito se fosse mostrado ao público que a atuação parlamentar do deputado Afif tinha sido negligente em relação às questões sociais. Era exatamente o contrário do que ele vinha pregando na TV e que estava dando resultados. Woile é um cara legal, afetivo, amigo, mas também é muito exigente. Ele deixou isso claro ao me incumbir da tarefa de fazer uma peça publicitária e com ela mudar o panorama das pesquisas. Era preciso, nosso candidato estava em quinto lugar. O material que mostrava a atuação parlamentar de Afif me foi passado às mãos e tomei o primeiro avião para São Paulo, voando por coincidência ao lado de José Serra que reclamou do macarrão servido no jantar. Estava ruim mesmo. Depois de dormir em casa, após longa ausência, fui procurar a produtora Manduri 35, de Mimito Gomes, experiente diretor de filmes publicitários. Nós tínhamos simpatia mútua, sempre que trabalhamos junto as coisas deram certo. Depois de estudar como combinar as ausências parlamentares com uma forma de causar impacto no público, chegamos ao desenho final. Por sugestão de Mimito, filmaríamos em película 35mm, em preto e branco. Usamos, como cenário, a pia da produtora, metálica e cheia de adereços, meio rococó. Um funcionário serviu de modelo, suas mãos fotografavam bem. Usando um Rolex de ouro no pulso, típico dos empresários bem-sucedidos, o modelo teve suas mãos filmadas em close. Da torneira caia um filete de água sobre as mãos que se esfregavam sem pressa. O Rolex de ouro em preto e branco pareceu mais de ouro do que se estivesse em cores. Projetado em câmera lenta, o filme ficou excelente, a cena era impressionante, o fundo escuro e a luz no foco lembravam os filmes de mistério da RKO. Depois foi só finalizar. Um locutor do estilo do Sargentelli anunciava: Sessão que prevê aumento nos benefícios dos aposentados. A voz então chamava: Deputado Guilherme Afif Domingos. Aí um carimbo enorme, amarelo, batia na tela com eco, enquanto a voz cavernosa, parecendo vir do fundo dos infernos dizia: Ausente! A palavra ausente ficava na tela até a nova votação ser chamada. A cena se repetiu em mais três votações, a peça totalizou um minuto. Foi ao ar na manhã seguinte, e ficou durante uma semana. Depois não foi mais preciso usá-la, a candidatura Afif desceu em queda livre. Acabou nas últimas colocações. Pode ter sido coincidência, mas aquela peça teve o seu papel. O autor intelectual foi o Woile, embora ele como bom chefe não tenha interferido na criação. Eu e Mimito tivemos carta branca e fizemos a nossa parte. Como equipe marcamos um gol. Disso eu nunca terei dúvidas. No fim da campanha nós estávamos quase lá, se tivéssemos mais uma semana o Mário teria ido para o segundo turno e a história do Brasil seria outra.
Nota do Editor: Sidney Borges é jornalista e trabalhou na Rede Globo, Rede Record, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo (Suplemento Marinha Mercante) Revista Voar, Revista Ícaro etc. Atualmente colabora com: O Guaruçá, Correio do Litoral, Observatório da Imprensa e Caros Amigos (sites); Lojas Murray, Sidney Borges e Ubatuba Víbora (blogs).
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