A única casa de três andares da rua não tinha exatamente três andares. O dono a construiu inspirado em gravuras de contos de fadas. O terceiro andar era uma torre circular com porta em arco abrindo para uma pequena sacada. Quando o construtor morreu a casa foi alugada. Um dos novos moradores, já velhinho, costumava ficar no jardim, na cadeira de balanço, olhando a grama crescer e as borboletas. No final do dia aboletava-se na sacada da torre a apreciar as meninas da fábrica de tecidos. Os moleques da rua o chamavam de Nono. Com o tempo o apelido ganhou extensão, passou a ser "nono das quatro risadas". Alguém notou que por volta das dez horas da manhã ele abria um largo sorriso, o que se repetia no meio da tarde. O arguto observador também percebeu que a manifestação estava ligada à passagem da Dorinha, funcionária do escritório da fábrica. Todos os dias a garota transitava na porta do Nono. Na ida e na volta, de manhã e de tarde. A bamboleante Dorinha ia na venda do Dárcio comprar biscoitos e chocolates para os colegas. Um dia Dorinha sumiu, evaporou, desmaterializou-se. Nono parou de sorrir. Inicialmente ficou triste, depois com raiva, de tempos em tempos levantava o punho como um pantera negra. Dorinha mudou o trajeto, passou a ir ao novo supermercado que tinha mais ofertas e preços melhores. Nono foi vítima do liberalismo econômico. Com o passar do tempo ele já não descia, passava os dias recluso na torre, saindo raramente na sacada para cuspir. Até que uma cusparada das mais alentadas acertou a calva do seu Toyota. Veio até polícia. A vizinhança saiu para ver o que estava acontecendo, a porta do Nono ficou parecendo a rua Direita. Foram todos para a delegacia, seu Toyota blasfemando em alemão, o apelido era devido aos tremores quando ele tomava umas. Nono entrou no camburão sorrindo, na frente da multidão que se formara estava Dorinha. A irmã que o acompanhava, Alba, disse que ele retornou radiante, colocou Charles Trenet na vitrola, dançou, foi à sacada, cuspiu e depois dormiu. Nunca mais se levantou, viajou volteando nos braços de Dorinha. Ou apenas morreu sem dar um pio, como morrem os passarinhos. Dorinha casou-se com o moço da farmácia, teve três filhos, engordou duas arrobas e hoje vive com Mané, guarda do posto de gasolina.
Nota do Editor: Sidney Borges é jornalista e trabalhou na Rede Globo, Rede Record, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo (Suplemento Marinha Mercante) Revista Voar, Revista Ícaro etc. Atualmente colabora com: O Guaruçá, Correio do Litoral, Observatório da Imprensa e Caros Amigos (sites); Lojas Murray, Sidney Borges e Ubatuba Víbora (blogs).
|