Engana-se quem pensa que era fácil a vida dos nobres de antes da Revolução Francesa. Não era, dava imenso trabalho não morrer de tédio. Passar o tempo entre caçadas, folguedos de salão, minuetos, viagens, banquetes, amantes, não é vida para qualquer um, somente escolhidos pela divina providência tiveram classe para resistir. Burgueses e servos padeciam de falta de fibra, só pensavam em trabalhar, coisa de classes inferiores. Cansado da rotina estafante o nobilíssimo conde D’Alembrat mudou-se para Portugal, fixando residência em Figueira da Foz. Durante trezentos anos a família buscou a perfeição em matéria de culinária. O supremo empadão. Finas farinhas do melhor trigo da Europa, ovos de galinhas tratadas a pão-de-ló e champanhe, manteiga de leite de vacas sagradas. Os D’Alembrat não pouparam dinheiro, queriam ingredientes perfeitos. Depois de milhares de tentativas a massa tomou forma. O nome encontrado foi prosáico, "massa podre". De podre não tinha nada, mas a consistência era tal que desmanchava na boca. Pedaços cortados com o garfo mantinham a integridade formal no trajeto prato-boca e ao entrar em contato com as papilas gustativas liberavam aromas inebriantes, capazes de converter ao cristianismo o mais empedernido dos ateus. Empadão dos deuses. A fórmula foi mantida no mais rigoroso segredo, os serviçais jamais souberam a seqüência, o toque final, a mistura mágica, sempre ficou por conta dos membros da família. A nobreza européia curvou-se ante a iguaria, caravanas estavam sempre em movimento a fim de experimentar o fabuloso empadão D’Alembrat, os que iam notavam a felicidade dos que voltavam. Até Robespierre, em pleno período do terror, mandava buscar empadões em Figueira da Foz e depois condenava os emissários à guilhotina. Nas estradas esburacadas da França dos luíses não havia empadão que ficasse inteiro. Robespierre se enfurecia, embora poucos saibam que foi por conta de um empadão esfarelado que nasceu outra iguaria. A farofa. O cozinheiro desapontado com o desmantelo guarneceu o faisão com os restos, que chamou de faroff, mais tarde farofa. Foi outro grande sucesso do período revolucionário, jacobinos, girondinos e sans-colottes aprovaram, o clero abençoou. No entanto, sempre há um no entanto, o empadão D’Alembrat era grande e desajeitado e precisava ser servido à mesa. O visconde de Danêga, Aspásio D’Alembrat, teve uma idéia, a única da vida. Pediu ao cozinheiro que fizesse empadões pequenos, que chamou de empadinhas. Aspásio era pouco inteligente mas enxergava o óbvio. E era bom com as palavras: empadão, empadinha, não deixa de haver um toque de gênio. Algumas centenas de anos depois, no Brasil, um presidente iria tecer comentários à altura. Munido de uma carga de empadinhas recheadas de faisão e ovos de esturjão, Danêga foi à França puxar o saco de Robespierre a quem entregou pessoalmente a oferenda. O líder revolucionário parou o trabalho, olhou as empadinhas e ficou radiante. Empadões D’Alembrat em formato pequeno, sensacional, disse. E acrescentou: nada mais revolucionário. Danton, venha comer uma empadinha, convidou Robespierre. Vai aqui um momento de reflexão. Os D’Alembrat eram um pouco ignorantes, falo baixo por não gostar de fofocas, mas não tinham a mínima idéia do que fosse resistência dos materiais e nem desconfiavam das armadilhas das escalas. Um empadão é um empadão, comporta-se como tal, mas uma empadinha, embora seja feita do mesmo material e tenha o mesmo sabor, é menor, e, portanto, diferente. Danton pegou a primeira empadinha e ao colocá-la na boca sentiu o gosto característico do vento do Sena. E observou a formação de um montinho de pó no chão. Digo, de farelo. Pegou outra e outra e outra e a cena repetiu-se, a pressão dos dedos era demasiadamente forte para a resistência à compressão da estrutura cilíndrica. Ao mudar a escala D’Alembrat deveria ter mudado a consistência da massa. Dizem que atentou para o detalhe enquanto subia ao cadafalso para ser guilhotinado. A história omite, mas eu conto, foi no episódio das empadinhas que Danton e Robespierre romperam de vez. Os valentes D’Alembrat fizeram muita gente perder a cabeça, eles próprios acabaram guilhotinados e levaram para o túmulo a receita das empadinhas. As melhores do mundo. Pena que incomíveis...
Nota do Editor: Sidney Borges é jornalista e trabalhou na Rede Globo, Rede Record, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo (Suplemento Marinha Mercante) Revista Voar, Revista Ícaro etc. Atualmente colabora com: O Guaruçá, Correio do Litoral, Observatório da Imprensa e Caros Amigos (sites); Lojas Murray, Sidney Borges e Ubatuba Víbora (blogs).
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