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COLUNISTA
Sidney Borges
20/05/2004 - 17h07
A perna de Bertrand
 
 

Hoje é possível sintonizar um dos canais mais insólitos da televisão. Trata-se do Infinito, cujo conteúdo é produzido na Argentina. Cada vez que surge na tela o logotipo, que parece um enrodilhado de alças intestinais, lembro-me de Lopez Rega, "El Brujo", que teve papel decisivo nos destinos de nossos vizinhos na época de Isabelita Perón. Nesse tempo o lema da Argentina poderia ser: "Por que usar de racionalidade se podemos ser irracionais"? Aliás, difícil mesmo era entender o papel de Perón no imaginário dos políticos e do povo argentino. Da extrema esquerda à extrema direita, todos se diziam peronistas e juravam fidelidade canina às idéias do general. Que idéias? Sinceramente eu nunca soube exatamente o que pensava ou o queria Perón, salvo que gostava de dançarinas de cabarés. Pois foi num frio inverno que caminhando pelas ruas de Buenos Aires, acabei amigo de um franco-argelino anarquista, chamado Bertrand. Dono de um senso de humor incomum, que misturava o non-sense inglês com a falta de modéstia dos argentinos, Bertrand me apresentou alguns lugares típicos da contracultura portenha, normalmente não conhecidos dos turistas. Numa dessas saídas, acabamos no apartamento de um pintor decadente, na calle Suipacha, onde muito se falou de política e eu pouco entendi, pois além de falar rápido e ao mesmo tempo, usaram muita gíria. Acabei pegando uma revista e comecei a folheá-la. O conteúdo me causou espanto. Era uma revista da Marinha Argentina, os artigos assinados por oficiais tratavam de geopolítica. Um dos textos discorria sobre a necessidade de expansão, dizia que a Argentina era a dona legítima de uma parte do Território da Missões e deveria ir à guerra para fazer valer os seus direitos. Isso significava invadir o Brasil! Imaginei ter ficado louco, quem sabe tivesse sido o vinho. Bertrand percebeu o meu interesse pela revista e piscou para mim, não entendi o que isso queria dizer. Saímos da casa de Hector quase de manhã, caminhei ao lado de Bertrand até o hotel onde estava hospedado. A caminhada demorou mais do que o normal, Bertrand perdera uma perna na guerra da Argélia, tinha dificuldade para caminhar rápido, embora caminhasse no seu ritmo muito bem. Entramos no hotel para tomar café, ele então abriu a mochila e me deu a revista. Disse que Hector não ia precisar dela. Palavras proféticas, Hector desapareceu após ser preso pelos serviços de inteligência da marinha. Inteligência? Depois de nos despedirmos, dormi e ao acordar retomei a leitura, na verdade eu tinha ficado tão impressionado com a revista que sonhei com ela. Outro artigo, escrito por um oficial superior, falava em tom empolado e quase rococó da polêmica com o Chile sobre as Ilhas do canal de Beagle, Lennox, Picton e Nueva, que estavam sob arbitramento internacional. Não pude deixar de notar o tom belicoso dos oficiais escritores, eles incitavam a tropa à guerra. No artigo que falava do Brasil éramos tratados de macaquitos, negros e outros adjetivos pejorativos, se bem que negro é pejorativo apenas para oficiais com tendências nazistas. O último e longo artigo tinha como título: "As Malvinas são Argentinas" e era assinado por um almirante. Não carece comentar o que continha, todos sabemos o que significou a tentativa dos militares argentinos de invadir uma parte do território britânico. Acabaram derrotados, a junta militar caiu e com a queda encerrou-se um dos capítulos mais vergonhosos da história da Argentina. A revista, cujo título era "Cabildo", pairou muito tempo na minha cabeça, comentei sobre o que li com muita gente e fui ignorado, tido como alarmista. Com o tempo esqueci dela que acabou desaparecendo, deve ter ido para o lixo numa das faxinas que as empregadas novas fazem para mostrar serviço. Isso aconteceu em 1975, antes do golpe que levou os militares ao poder. Nos anos subseqüentes desapareceram, além de Hector, todos os que estavam no apartamento naquela noite. Bertrand esteve no Brasil em 1981 a caminho da França onde pretendia ficar para sempre. Fora salvo da sanha assassina por ser cidadão francês, embora tenha sido preso e tido a perna mecânica confiscada. Quando ele me contou o fato, fiquei sério o quanto pude, depois explodimos numa gargalhada que me levou às lágrimas. Por que diabos os gorilas seqüestraram uma perna mecânica? Seria ela subversiva? Esperto como todo bom malandro internacional, Bertrand conseguiu uma perna nova, de materiais moderníssimos. Doação de uma organização de ajuda a refugiados. Bebemos a isso. Um ano depois o telefone tocou às quatro da manhã. Era Bertrand, de Paris, me chamando de bruxo. Com sono e desentendido, perguntei por que. Ele então me contou que a Argentina tinha acabado de invadir as Malvinas. Eu sabia há muito tempo que isso ia acontecer, embora ninguém acreditasse em minhas palavras. Onde andará Bertrand?


Nota do Editor: Sidney Borges é jornalista e trabalhou na Rede Globo, Rede Record, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo (Suplemento Marinha Mercante) Revista Voar, Revista Ícaro etc. Atualmente colabora com: O Guaruçá, Correio do Litoral, Observatório da Imprensa e Caros Amigos (sites); Lojas Murray, Sidney Borges e Ubatuba Víbora (blogs).
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