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COLUNISTA
Fátima Souza
23/12/2019 - 09h23
Bolo mágico
 
 

Ainda posso sentir o gosto daquele bolo de Natal que minha mãe fazia para comemorar a data. O aniversário de nascimento do menino Jesus.

Fecho os olhos e, como num filme, ele está lá, em cima da mesa, todo garboso, metido, dentro de uma bandeja verde. Um colosso de massa branca feita de manteiga, leite, ovos, farinha de trigo, fermento e amido de milho. Duas fornadas redondas com furo no meio, unidas com pedaços de goiabada como recheio. É coberta com um glacê branco de clara batida com açúcar e enfeitada com bolinhas prateadas, que se a gente bobeasse, trincava os dentes. Para tapar o furo do bolo, um redondo de papel recortado da lateral da caixa de Maizena.

Quase sempre disputávamos esse pedaço por causa do doce que estacionava ali.

Comer esse bolo com guaraná naquela época era a apoteose da noite de Natal. Uma vez que os presentes só eram recebidos na manhã seguinte junto com o café.

Que eu me lembre nunca tivemos ceia. Quando voltávamos da Missa do Galo, passávamos pelas casas das pessoas mais abastadas, aí sim ouvíamos balburdia de festa.

A nossa era mais simples. A iluminação era feita pelos lampiões nas paredes caiadas, ou pelas velas junto a árvore de galhos secos ornados com algodão para simular a neve. Bolinhas, casinhas russas de vidro, sinos de alumínio colorido. Também pendia na ponta do galho uma enorme estrela de papelão revestida de purpurina. Um carnavalesco festão brilhoso e multicolorido dava o toque final.

Festa mesmo era no almoço do dia vinte e cinco. Aí sim, o céu descia. Era uma distribuição de abraços e felicitações, pedidos de desculpas e perdões. Um zerar de desavenças e mal entendidos. Quase sempre afogados numa caneca de vinho, numa xícara usada de cidra, ou num gole de uca (aguardente) numa cuia de cabaça.

Todo mundo trazia seus bancos e mesa para juntar. Um desfile de panelas e panelões encantavam. Era um malabarismo só.

As crianças brincando de pique-esconde debaixo das mesas faziam as mulheres mães prometerem pauladas e bordoadas depois das festas. Os homens atiçavam as crianças a perturbarem mais só para ver a gritalhada.

Mesa posta. A fartura era um escândalo. Pato com mandioca, frango assado com farofa. Pernil a pururuca, peru assado com molho de alecrim. Arroz com molho de camarão, macarronada vermelhinha, farofa de banana, peixe espada frito, dourado assado. Molho de sapinhauá para comer com pão como tira gosto. Costela bovina com batata doce. Paçoca com banana verde.

Vinho, cachaça, cidra, groselha, guaraná, ponche, meia-de-seda, batida de maracujá, suco de uva, cerveja de vez em quando aparecia.

A sobremesa ficava por conta da caixa de uva, a melancia, a laranja, o abacaxi, doce de mamão verde, manjar de coco, pé-de-moleque de gengibre e pudim de pão, sem esquecer do doce de abóbora com coco.

Do meio dia até as cinco da tarde, todos que chegavam comiam.

Para fazer a digestão uma roda de viola e sanfona.

Enquanto uns se divertiam cantando e dançando, outros dançavam com as bacias de louças que levavam para lavar no rio.

Depois um café de saideira.

Uma tarde cheia de muitas importâncias, de muitas riquezas. Uma magia de um tempo que todos se importavam com todo mundo. Não havia tempo para depressão. As tristezas eram curadas nessas reuniões de família e amigos. Ninguém tinha nada, e ao mesmo tempo tinha tanto para dividir. Tinha a riqueza espiritual de amor ao próximo. De querer estar junto e partilhar nem que fosse uma reles conversa.

Hoje está todo mundo olhando para seu umbigo e pensando que só vai ter Natal se tiver presente de shopping. Que dirá um bolo cobertos de clara de ovos e açúcar. Sabendo que muitos dariam tudo para ter na noite de Natal uma fatia desse bolo.

Hoje gostaria de ter esse bolo mágico de novo no meu Natal. Para ter no dia seguinte a mesma alegria.

Feliz Natal!


Nota do Editor: Fátima Aparecida Carlos de Souza Barbosa dos Santos, ou simplesmente Fátima de Souza, é, sem dúvida, a primeira caiçara da sua geração a escrever sobre temas do cotidiano local. É autora de Arrelá Ubatuba.
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