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COLUNISTA
Alexandru Solomon
10/02/2017 - 06h39
Presunto e lembranças
 
 

Dia de folga da empregada. O pretexto apresentado para dar uma fugida era tão digno de crédito quanto uma promessa feita durante o horário eleitoral. O truque consiste em partir de uma verdade e chegar correndo ao cenário de paredes de cartolina. A constatação era: a vida continuava, mesmo durante a folga da empregada. A justificativa: alguém tinha de fazer as compras para manter o padrão do café da manhã. O argumento decisivo: como poderia suportar o olhar de incredulidade misturada com reprovação do marido e dos filhos: “Pão requentado?”. A verdade: ela estava cheia e queria caminhar.

A grandes males potenciais, soluções heróicas. De agasalho, rumou apressada em direção ao Lucas, a mercearia do bairro. Caminhava apressada, tinha pouco tempo para a ida e volta, mas há momentos em que importa estar só, mesmo se por poucos minutos.

Olhou de relance para uma vitrine e notou com satisfação que uma arrumação melhor do cabelo não fazia falta. Apressou o passo. Contornou com cuidado um dos troféus que o cachorrão do vizinho havia deixado na calçada. Esse senhor Hugo, que falta de vergonha! Quem tem um bicho tem de ser mais gente ainda. Um dia iria flagrá–lo. Não poderia ser de maneira diferente. De outra forma, ele negaria, — à moda de certos políticos — qualquer responsabilidade quanto à origem da pirâmide canina. Jogaria a culpa no sistema. O flagra teria de ser com testemunhas, para que o opróbrio da vizinhança liquidasse de um golpe só a arrogância e a possibilidade de reincidência. Se bem que, negar a evidência nada tinha de incomum.

Foi–lhe impossível reprimir um sorriso. Amanhecera politizada. No fundo, sabia que, mesmo assim, nada iria mudar. “O mundo está cheio de Hugos”. Bobagem pensar em horário eleitoral e nas práticas dos que prometem colocar a pasta de dentes de volta no tubo. O importante era poder curtir seus minutos de despreocupação, na rua.

Mais algumas passadas enérgicas e penetrava no ambiente conhecido, que um cheirinho gostoso de pão fresco anunciava à distância. Aroma imbatível aquele. Não conseguiu ver quem estava atrás do balcão. Uma pequena fila não a deixou divisar os rostos familiares.

Esse contratempo a deixou um pouco chateada. Só faltava ter na frente uma daquelas indecisas que iria pedir... “Umas” cem gramas disso, mais “umas” cento e cinqüenta daquilo lá e... só... Ah não, me vê mais duzentas gramas, ... pera, só cento e cinqüenta e oito pãezinhos. Ah, pesa bem pesado. Espere, me esqueci do leite... Já passara por situações parecidas e a válvula encontrada para dar vazão à irritação era corrigir o atropelo gramatical. Numa fila de umas dez pessoas, a probabilidade de encontrar uma chata desse gênero não era nada desprezível. Restava–lhe torcer para que fosse esse o dia da exceção. Tinha de voltar rapidamente para...—, estancou de súbito...

Aquelas costas espadaúdas ela teria reconhecido até no inferno. Talvez porque, muitos anos atrás, juntos estiveram no paraíso. Não era possível. A separação de duas décadas atrás voltou–lhe, de súbito, com incrível intensidade. Um verdadeiro soco.

Os pais dela colocando objeções, objeções, objeções. Lágrimas. “Não podemos continuar”. “Se me ama, vamos fugir, casamos em São Paulo e pronto. Decida–se”, “Não tenho coragem” “Então, fique, eu irei, sumirei de sua vita”. Fraqueza dela na época. Episódio soterrado. A vida seguiu seu curso, como costumam dizer os imortais em dia de falta de inspiração. Alê... tinha sumido até dos raros momentos nos quais passava em revista momentos felizes. Não tinha tempo para isso. No entanto, aquela visão fora suficiente para que o passado a invadisse avassaladoramente. Era ele, sem sombra de dúvida. Aquelas costas eram sua marca registrada.

Naquela época, ela costumava dizer ser vítima da síndrome de Europa, fazendo alusão ao episódio da jovem Europa seduzida por Zeus que se lhe apresentara metamorfoseado em touro. O que teria encantado Europa ela não sabia, mas a fixação naquele Zeus se devia, também, às costas. A imagem que julgava sepultada acabara de chicotear–lhe a calma. Sentiu–se corar. Pensou sair e procurar outra padaria... Não. Não poderia ser tão covarde. Além de covarde, atrasaria o café da manhã... Pensou nos pássaros do ninho, aguardando–a de bico aberto. Como iria dizer–lhes que, por ela querer fugir de um espectro de um outro tempo, teriam de comer torradas? Impossível.

Surpreendeu–se pensando no Alê, como não o fizera nos últimos vinte e tantos anos. O rosto de traços regulares, o queixo voluntarioso, a cicatriz na bochecha... esquerda — seria a esquerda? Claro que era — a boca sensual, o ligeiro sotaque...

A fila estava avançada. Alê estava sendo atendido.

Última chance: se quisesse fugir, o momento era aquele.

Ele estava pagando.

Já não era possível sair. Tampouco faria sentido.

Então, com a sacola de compras cheia, ele se virou e caminhou em direção à saída.

Era o mesmo. Nada havia mudado a não ser alguns cabelos grisalhos nas têmporas que o deixavam até mais charmoso. Ele estava se aproximando. Sentiu que as pernas estavam ameaçando traí–la. Apoiou–se no balcão.

Mais alguns segundos de tensão. O amor de outros tempos estava a menos de dois metros. O que faria ele? Qual deveria ser a reação dela?

Ele continuou caminhando calmamente, dirigiu–lhe um olhar neutro, passou por ela... e saiu.


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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