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COLUNISTA
Alexandru Solomon
20/08/2017 - 08h16
Encontro
 
 

Mal saíra do Hotel Meridien, onde seus amigos paulistas o convidaram para uma caipirinha. Quase uma da tarde. Nada demais, apenas o fato de ele não tomar caipirinha. Mas era uma amizade que vinha de longe, e não seriam algumas doses que iriam separá-los. Deglutira galhardamente três doses com alguns salgados e, após ouvir as indefectíveis piadas cuja validade havia expirado, despediu-se dos casais amigos e decidiu andar um pouco.

Colhido pelo bafo quente, olhou para a direita e viu o mar indecentemente azul, que em algum ponto longínquo engolia um céu de um azul mais claro, apenas manchado de algumas nuvens esparsas de algodão de um branco duvidoso. Andar um pouco pela Avenida Atlântica e olhar as beldades em uniformes de conquista não eram o ideal naquele momento. Tinha deixado trabalho no escritório e, apesar de o celular não reclamar nenhuma atenção, no momento, sabia dispor de menos de meia hora antes de enfrentar o mundo além túnel.

Além do túnel, acaba a Cidade Maravilhosa, era o seu bordão predileto. As malditas doses haviam tornado seu andar ligeiramente menos decidido que de costume. Na verdade, não sabia como matar a meia hora. Lá longe o Posto Seis e o Forte pareciam chamá-lo. Resistiu ao apelo e, muito a contragosto, decidiu andar um pouco pela Gustavo Sampaio. Um pouco de sombra, já que os prédios projetavam suas silhuetas no asfalto e lá também havia gente, muita gente andando sem muita pressa, com o ar tranquilo e um “xacomigo” zombeteiro estampado no rosto.

Relembrou a sessão de piadas. Achava que deveria haver algum dispositivo legal, ou pelo menos um acordo, que determinasse prazos além dos quais as anedotas seriam arquivadas e frequentariam somente as páginas das coletâneas ditas humorísticas. Ter de dar risadas ao ouvir pela centésima vez a mesma piada, ou variações sobre o mesmo tema, poderia ser perigoso para a paciência dos ouvintes, ou reverter em agressão física em detrimento de um contador desatualizado. Até que seria uma boa ideia colocar avisos nesse sentido. Ou, então, seguindo o exemplo das churrascarias rodízio, introduzir o cartão de dupla face, a verde autorizando a continuação e a vermelha decretando o final da sessão. Muito complicado. Como fazer no caso de divergência? Decidir por maioria simples. Ou, devido à importância do assunto, haveria de ter a concordância de pelo menos dois terços dos ouvintes? Os desempates seriam decididos pelo voto de Minerva do criminoso, isto é, do contador. E se houvesse daltônicos na platéia?

Será que há exame médico para garçons de rodízio, eliminando os daltônicos?

Mas, na falta de regulamentação, como resistir à sanha do contador de “causos”? Não dar risada? Interromper? Contar a sua versão? Esses expedientes eram ainda piores. Olhar a paisagem do terraço, sim, e acompanhar a gargalhada dos outros foi a solução encontrada. Providencialmente. A regulamentação ficaria adiada, procrastinada, decidiu com uma risadinha interior.

E tem aquela do português que chega em casa... E aquela outra da freira que... Ah, a melhor de todas, acabaram de me contar: o Joãozinho pergunta para a professora...

Afinal, era um bom passatempo, com a vantagem de observar fisionomias alegres. As reações eram muitas vezes mais engraçadas que as piadas.

Será que eles também conheciam TODAS aquelas anedotas, ou somente algumas?

Esbarrou num transeunte, balbuciou uma desculpa qualquer e teve direito a um bem humorado:

– Ô meu, olha só, estou na preferencial!

O peso pesado já estava se afastando e as ideias voltando a se agrupar depois da desordem causada pelo baque.

A ligeira dor de cabeça pedia uma parada numa farmácia. E farmácia era o que não faltava na rua.

Entrou e aguardou que a balconista o notasse. Entre ser notado e a pergunta:

– O que deseja? se passaram alguns intermináveis segundos.

– Duas passagens para Paris em classe executiva. E ante o misto de espanto e divertimento da moça, completou:

– Bom, já que não tem, qualquer coisa para a dor de cabeça. Poderia tomar aqui mesmo? Tomou o analgésico, agradeceu e, instantes mais tarde, estava de volta à calçada esburacada.

Olhou para o Leme Palace e resolveu voltar caminhando pela Atlântica.

Evitou o segundo esbarrão da meia hora de folga.

Em frações de segundos, os olhares se cruzaram. Era uma beldade, outonal, mas, apreciador de Vivaldi, as quatro estações são arrebatadoras, pensou.

O andar sinuoso, os pequenos sulcos rodeando os olhos, carimbos ainda piedosos no passaporte da vida, cabelos cortados Chanel, ombros e decote plenamente apresentáveis e não apenas um tributo pago ao calor daquele verão, pernas bonitas, e medidas tendendo à exuberância. O rosto comum, tinha o olhar faiscante a valorizá-lo.

Naquele instante, o tempo parou, não o suficiente, porém, para que, da extrema timidez dele, brotasse algo mais inteligente do que um sorriso vagamente encorajador. “Pergunte algo, as horas, o caminho para algum lugar, o nome da rua, qualquer coisa”, rebelou-se dentro dele uma voz indignada por jamais ter sido ouvida no passado.

Continuou, como que petrificado, enquanto, sem deixar de olhá-lo, ela passou por ele longe o suficiente para não tocá-lo, e perto o bastante para deixá-lo sentir o perfume discreto que a envolvia.

Ele continuou imóvel e virou a cabeça, contemplando a desconhecida, que continuava andando, afastando-se aos poucos. Alguns passos depois, ela virou a cabeça e o olhar, mesmo àquela distância, lançou um convite mudo ou, pelo menos, assim parecia.

Sem reação, ele a acompanhou com o olhar. Ela deu mais alguns passos e novamente olhou para trás. A voz interior estava se desesperando. Ele mesmo não entendia o porquê da sua imobilidade. A desconhecida estava se afastando cada vez mais, confundia-se no oceano de cabeças e, mesmo assim, pareceu-lhe que lá longe uma cabeça estava se virando uma última vez para trás.

Era um adeus. Sentiu que o que se afastava não era uma desconhecida. Era um pedaço de si mesmo, de uma juventude da qual não havia sabido desfrutar e agora lhe acenava de longe, mergulhada num misto de lembranças e saudade.


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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