Recentemente, reli essa pequena jóia de autoria do escritor vienense Stefan Zweig, aquele que se referia ao Brasil como sendo o país do futuro. Decorridos mais de 60 anos, ostentamos o mesmo rótulo, mas essa é uma outra história. O autor percorre, com sua maestria peculiar, os labirintos da mente humana, tomando como ponto de referência o jogo de xadrez. Reduzido à expressão mais despretensiosa, o jogo consiste em encurralar uma peça de madeira do adversário. Nada além disso. Trata-se, é claro, de uma simplificação, que se, por um lado tudo tem de verdadeiro, por outro lado, minimiza as tempestades mentais que estão por trás da movimentação de 64 peças sobre uma tábua quadriculada. Eu mesmo fui um amador apaixonado por essa aventura. Isso começou quando tinha sete anos e terminou durante os anos de faculdade, durante os quais, por inércia, ainda tive algumas recaídas. Os jogadores, que levam o jogo a sério, são seres bizarros. Muitas vezes, além do desempenho frente ao tabuleiro, protagonizam cenas estranhas. Alguns exemplos? O campeão mundial Alekhine (vamos usar a grafia francesa, que, por definição, distorce tudo), num momento de fúria, urinou em direção ao público. Outro campeão mundial, Bobby Fisher, ao desafiar Boris Spassky em Reykjawick, profundamente incomodado com os reflexos da luz incidindo sobre o tabuleiro, declarou que não iria jogar nessas condições. Seu não comparecimento custou-lhe duas derrotas, depois das quais ministrou uma surra no detentor do título. Anos mais tarde, por razões pouco claras, deixou de defender seu título. Outro ex-campeão Gary Kasparov desafiado (e derrotado) por uma engenhoca da IBM, o tal de Deep thought (pensamento profundo), teve uma quase crise de raiva ao descobrir que numa partida que havia abandonado, ao enfrentar o computador, havia uma manobra que teria lhe garantido o empate. Além de ser um confronto no qual, em tese, a sorte não influencia o resultado final, o lado psicológico possui uma influência nada desprezível. Vacilos de grandes mestres deliciam os neófitos; já que se os deuses do tabuleiro podem errar, por que negar esse direito aos diletantes? Os exemplos são inúmeros. Há mais de cem anos o mestre russo Tchigorin desafiara o campeão mundial W. Steinitz, e na última partida, estando em desvantagem de um ponto, precisava ganhar, para levar o match para uma prorrogação de três partidas. Conseguiu uma posição ganhadora, e ao deslocar uma peça defensiva, levou mate em dois lances. Coisa de principiante. No torneio dos candidatos de 1953, Tigran Petrossian, que mais tarde viria a ser campeão mundial, perdeu a dama num lance grotesco. “Eles também erram”. A infinidade de lances possíveis torna o jogo praticamente inesgotável em alternativas. No entanto, hoje, as análises tornam cada vez mais problemática a descoberta de uma novidade teórica nas aberturas. Já se foi o tempo em que valiam fórmulas mnemônicas como a do Dr. Tarrasch Der Springer am rande ist immer ein Schande (um cavalo à margem – do tabuleiro – é sempre uma vergonha). Graças ao contínuo aperfeiçoamento da técnica das aberturas, um grande mestre do passado, aterrissando num torneio de força média, teria grande chance de ser “varrido do tabuleiro” por um jogador de força mediana. Além dos recursos lícitos, entra o fator humano. Trata-se de um combate de egos. Muitas vezes dar um lance fazendo estalar a própria peça ao encontro do tabuleiro, aparentando segurança, pode deixar o adversário em pânico. Um nada pode ser suficiente para fazer pender a balança para um ou outro lado. Um sorriso confiante de Korchnoi já levou nosso Mequinho à derrota. Mesmo jogadores sem retrospecto brilhante têm histórias saborosas para contar. Para ilustrar essa afirmação, irei recorrer às minhas lembranças. Estava participando da competição Univ. de São Carlos x ITA (num modesto terceiro tabuleiro – ou seja, havia dois jogadores mais fortes no primeiro e segundo). A competição estava empatada. De Pretas joguei a Defesa francesa – para tornar o relato menos árido, a defesa consiste em responder ao avanço de duas casas do peão do Rei das Brancas com o avanço de uma casa do peão do Rei das Pretas. Conversa vai, conversa vem, fiquei com um peão de vantagem num final de torres. Como se tratava do peão da coluna da torre, todos os manuais ensinam ser esse um final empatado. Meu capitão veio, olhou o tabuleiro e disse: “empate logo isso”. Os termos usados foram menos eufônicos. Meu adversário propôs empate. Só fiz refestelar-me na cadeira, com ar ausente, e declarei. “Nesta posição, as Pretas ganham”. Não é que meu adversário errou e, poucos lances depois, abandonou? Num torneio por pontos corridos, estava eu em primeiro lugar, antes da última rodada. Pelo sistema de emparceiramento, deveria jogar com o segundo, que estava meio ponto atrás. (uma vitória vale um ponto, o empate vale meio). Ou seja, um empate bastava-me, e para o outro, só a vitória interessava. Joguei, com as Brancas uma abertura sabidamente inferior para as Brancas: o ataque Fegatello, uma abertura que havia aprendido nos anos 50, ainda em Bucareste. Qualquer almanaque de farmácia informa ser essa abertura desfavorável às Brancas. Mas para tanto, “o inimigo” deveria ter lido o tal almanaque. Apostei, pelo que eu já sabia a respeito dele, que tal não era o caso. Depois do quarto lance (CF3-G5) “o inimigo” mergulhou num abismo de reflexão. Propus empate, que me dava o primeiro lugar. Ele pensou, pensou e deve ter levado uma bela meia-hora, durante a qual, levantei, circulei pela sala, examinado as outras partidas, voltando sempre apressado para ver se as Pretas haviam tomado alguma decisão. Já sabia que o adversário estava com medo, pois perdendo, iria para um quarto lugar empatado. Finalmente, ele aceitou o empate. O prazer não teria sido completo se não lhe mostrasse que empatou podendo ganhar. Ser gentil é próprio dos enxadristas. Não havia razão para fugir à regra. Nem sempre as coisas correm tão bem. Jogando contra a Poli, com as Brancas, o adversário jogou a defesa Alekhine. Consegui cair numa cilada besta (as ciladas dos adversários nunca merecem epítetos melhores) e perdi, em poucos lances a “qualidade” (significa perder uma torre em troca de um bispo ou cavalo). Meu capitão aproximou-se e declarou: “Dançou” (novamente, o rigor me obriga dizer não ter sido esse o termo empregado). Fiz o diabo, congestionei a posição, (a ponto de meu capitão achar que realmente poderia salvar a partida) aparentei ar tranqüilo e despreocupado, caminhei pela sala, o adversário também, propus empate, ele recusou, e.... acabei perdendo. O sorriso do outro prevaleceu. O jogo é maravilhoso. Dele guardo belas lembranças e imagino que o surto do politicamente correto em breve irá eliminar os termos de cunho racista: Brancas e Pretas. Quem sabe, leremos um dia: Nessa posição, as Afro-descendentes levam vantagem.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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