L. nasceu, segundo testemunhos de seus contemporâneos, na Paris dos Bálcãs, Bucareste, que de Paris tinha muito pouco e de Bálcãs, um bocado. Morou por um tempo na Strada Sperantei – ou rua da esperança -, num apartamento que se tornou pequeno quando sua família teve de conviver com dois jogadores de rúgbi da equipe do Dinamo de Bucareste, uma cobertura pouco original dos agentes da Securitate – a temida polícia secreta romena –. Com a chegada dos designados pelo “espaço locativo”, organização subordinada aos conselhos populares de bairro, que resolvia o déficit habitacional socando gente onde de acordo com o critério – no máximo um cômodo com janelas por morador -, havia espaços a serem preenchidos, a rotina da família mudou. Nada de conversas em voz alta, nada de assuntos geradores de risco, nada de piadas envolvendo as sábias lideranças do país, nada de ouvir estações de rádio, além das oficiais. Os olhos e ouvidos da sempre vigilante democracia popular estavam implantados e atentos naquele lar pacato. Separados por uma reles porta, observados e observadores desfrutavam de maneira diversa os benefícios dessa coabitação. A pressão contínua dos alertas falados ou expressos por mímicas eloqüentes: “Fale baixo, não fale francês, cuidado com o que diz no telefone” mantinham a família em estado de permanente vigilância. Se essa situação de eterno vigiado acarretou ou não algum impacto na personalidade de L. seria impossível afirmar. L. devia ter uns cinco ou talvez seis anos, quando, pela primeira vez, sentiu seu sangue gelar. Acabara de perceber o que significava ser, ele também, mortal. O trágico fim, que parecia até bem pouco tempo ser apenas um problema para moscas ou cães atropelados, lhe era reservado. No seu desespero, procurou imediatamente a Nora, ex-babá promovida a governanta e que continuava com a família para não abrir outra brecha para o famoso “espaço locativo’. Ouviu dela: – Bobinho, depois vamos para o céu. Viramos anjos. – A explicação o satisfez, por algum tempo, embora não ficasse claro o que de tão bom haveria em virar um anjo. Encontrou num velho Larousse fotos da escultura dos anjos de Thorvaldsen na catedral de São Pedro em Roma e, apesar de achar que ficaria gordo e ridículo, sossegou. Virar anjo era melhor do que... Logo depois de presenciar a passagem de um cortejo fúnebre - naquela época era ainda uma carruagem negra, puxada por cavalos adornados de preto - verdadeiro caixote com paredes de vidro deixando visível o caixão, as dúvidas voltaram a se acumular. Não conseguiu resistir e tornou a perguntar à Nora: - Você tem certeza? Vamos virar anjos? Como sabe tão bem? Há lugar para tantos anjos? A última preocupação era, provavelmente, o retrato do trauma do “espaço locativo” Avessa á metafísica, Nora procurou tranqüilizá-lo. Fez o melhor que pôde, não sem antes certificar-se de que os dois agentes estavam longe, em alguma missão ou treinando no estádio do Dinamo Bucareste no bulevar Stefan cel Mare. – Mas é claro, queridinho. Não se preocupe. Basta ser um menino obediente, não pecar e virará um anjinho. Mas para que se preocupar se tem a vida inteira pela frente? - É que não sei o que vem depois. Um dia, serei bem velho como você. – L. estava vislumbrando claramente o drama de sua finitude. - Por enquanto, é apenas uma criança. Não se preocupe. – Você também? Gostaria de ter anjos conhecidos por perto. - Era uma tentativa de perguntar a respeito do destino de seus pais e amigos. – É, acho que sim, pode ser. A resposta não o satisfez, e nunca mais tentou arrancar mais informações. Passaram-se os anos. A tentativa de dissipar o pavor coube a um padre. Ou teria sido um rabino? Sem grandes resultados. Antes de adormecer o terror voltava. Por alguns segundos, mergulhava num desespero atroz. E se ‘depois’ não houvesse mais nada. As primeiras noções de astronomia o deixaram em pânico. Naquela imensidão de planetas, estrelas e cometas, haveria quem se preocupasse com ele? Nos momentos de angústia, agarrava com força o travesseiro, nele enterrando a cabeça, já que o receio o assediava por alguns minutos até ir se dissipando lentamente. Já sabia, que se demorasse a adormecer, as apreensões voltariam. Não havia meio de se livrar delas. Nessas ocasiões, parecia-lhe ouvir o sábio que sentenciava: “Se no fundo de todas as coisas não houver nada além de um poder selvagem e borbulhante, no turbilhão de paixões escuras, se sob todas as coisas estiver escondido um vazio sem fundo que nada puder preencher, o que seria a vida se não a desesperança?” Mais tarde, veio a descobrir o nome do sábio sem que esse fato lhe trouxesse a serenidade, durante os momentos de angustura. Fora aqueles breves instantes de terror intenso, L. nada tinha de diferente se comparado com seus amigos, exceto talvez seus óculos de lentes grossas, que lhe valeram o apelido de Marin Niculescu, uma glória local do ciclismo. Estudou, com relativo brilho, experimentou o raro privilégio de poder emigrar, legalmente, para uma terra distante, cortada pelo trópico do Capricórnio, trilhou uma carreira profissional, com relativo destaque, fundou uma família, com relativo sucesso, tornou-se um torcedor relativamente fanático do Santos F.C. Afinal, tudo é relativo. A sensação de estar descendo a ladeira, rumo ao desconhecido, não o abandonou em momento algum. Quem o abandonou foi a esposa, por não agüentar mais ser acordada no meio da noite pelos lamentos de um marido insone e amedrontado, que a ela se agarrava como o fizera na infância com o travesseiro consolador. Durante algum tempo, ela soubera proporcionar-lhe o remédio de fabricação caseira, na forma de amor. Com o passar dos anos e o arrefecimento da paixão, ela substituiu o compromisso do “Até que a morte nos separe”, por uma solução mais prática “Até eu dar no pé”. Os filhos, casados, afastavam-se cada vez mais, sobrando os encontros proporcionados por aniversários diversos e uma ou outra visita acidental, durante as quais a tranqüilidade parecia ter resolvido fazer-lhe companhia. No fundo, ele estava terrivelmente, assus-tado-ra-mente só. O surgimento da visão insuportável tornou-se mais frequente. Resolveu procurar a ajuda de um ‘psi’ calorosamente recomendado por um amigo, a quem confidenciara seu padecer. Aquele figurão iria ajudá-lo. Se esse fracassasse, nenhum outro seria capaz. “Eu era um poço de incertezas e vacilos, e ele foi bárbaro”. Recomendação melhor, impossível. E como nada agrada mais a um náufrago do que uma bóia, procurou o médico e assim deu início a uma nova etapa nessa luta desesperada. As primeiras sessões foram bastante desprovidas de graça. Ele desfiava o rosário de inquietudes, enquanto o outro se limitava a tomar algumas anotações, solicitava dados sobre a freqüência de ocorrência dos “sintomas” e o encorajava a continuar revelando pormenores. As sessões eram interrompidas pelo sinal sonoro de um marcador de tempo. O ‘psi’ apertava-lhe a mão e juntos verificavam na agenda qual a data e o horário da próxima consulta. Uma vez o médico resolveu sair dos seu eternos pronunciamentos lacônicos “Como, de acordo com os médicos, talvez não haja alguém inteiramente são, poder-se-ia dizer, conhecendo os seres humanos, que não há um único ser isento de desespero, no qual não se abrigue uma inquietação, um distúrbio, um medo de um quê desconhecido ou que não ousa mesmo tentar conhecer”. Grande coisa! Ambos tinham lido Kierkegaard. Não era preciso gastar uma fortuna para, juntos, reinterpretá-lo. – Obrigado, doutor Carlos. Isso não nos levará muito longe. Posso ter a fé e a certeza? É o que procuro. – Relaxe... Se é isso que sente agora, teremos de falar mais e mais. Não sou um removedor de grilos. Juntos, podemos encontrar um caminho para que você possa seguir sem medo. Prossiga. – Se agora irá me falar na busca da luz interior, teremos que parar imediatamente... Sugiro deixar de lado o “Peça e receberá”, uma vez que escolhi outro bordão: Pague e receberá. Estou lhe pagando... Espero receber... – De tudo que vi nesses seis meses – retrucou o médico, sem se abalar – concluo que talvez tenha chegado a hora de eu lhe apresentar um achado secreto, que ainda não testei em nenhum ser. É uma solução que poderá me valer a cassação do registro profissional. Ocorre que você é o paciente, cujo perfil melhor se adapta a essa descoberta. Há uma condição: aceitando ou não minha solução, deve prometer que jamais irá mencionar o que irei lhe contar. Falaremos sobre isso na próxima sexta-feira. Se concordar com a proposta, isso coincidirá com sua alta. Se não aceitar, uma hipótese muito razoável, continuaremos, normalmente, nossas sessões. - Enquanto falava, um brilho estranho parecia iluminar o olhar do ‘psi’. – Então, fale. Sabe que aceitarei. É claro que aceitarei. – Seu tempo acabou. – Não pode me deixar assim. Agora, depois de me acenar com a solução, não pode me deixar prisioneiro da obsessão. Apagou a luz no fim do túnel a pretexto de ter se esgotado o tempo? Não faça isso. Não é justo! – Impossível. Há um paciente esperando. – Percebe que está me torturando? – Não pretendo torturá-lo. Pense que talvez haja uma solução inédita. Ah, sim. Até a próxima sessão, suspenda toda a medicação que lhe receitei. – Suspender tudo? Como farei para dormir? Logo agora, que durmo feito recém-nascido? – A ideia de haver uma alternativa interessante agirá melhor que um calmante. O médico levantou-se e veio apertar-lhe a mão. O aperto pareceu-lhe diferente, sem dúvida por causa da reviravolta provável do tratamento. – Até sexta-feira, amigo – Que estranho, nunca o doutor Carlos o chamara de “amigo’.. – Até sexta. Será que não pode me encaixar antes? – Impossível. Agenda lotada. Faltavam dois dias para a temível sexta. Pior, faltavam duas noites. Para sua surpresa, na primeira, dormiu tranqüilo sem nenhum tipo de agitação. Será que a simples existência de uma promessa espantava a paúra? Na quinta-feira, não resistiu e telefonou. – Aconteceu alguma coisa? A voz do médico soava completamente impessoal. Muito diferente da animação da qual dera mostra na antevéspera. – Será que não poderíamos antecipar a sessão? – Não. Cada coisa tem seu tempo certo. De mais a mais, já disse, minha agenda está lotada. Procure ficar calmo. Distraia-se. Leia algo. Caminhe um pouco. Não costumo dar conselhos, mas abro essa exceção. A intranqüilidade voltou com redobrado vigor. O poço sem fundo estava lá, prestes a engolir sua vítima. Não apelou para soporífero algum. O psi fora claro. Saiu da cama, tentou ler, assistir à TV e, de volta à cama, contar carneiros. Por tratar-se de ovelhas de Panurgo, a tarefa de contabilizá-las era mais desafiadora e mais cansativa. Finalmente, após horas de desassossego, o sono veio, já no raiar da famosa sexta-feira. O médico o recebeu da mesma forma fria e distante com a qual costumava tratá-lo. – Então, doutor? – Como passou esse dois dias? Quer falar sobre algo em particular? – Não. Quero apenas experimentar o achado. – Sem saber do que se trata? – Isso. – Recorde-se. Qualquer que seja sua decisão, o que lhe direi não poderá ser comentado. Na verdade, trata-se de algo tão inusitado que, mesmo se resolver ser tagarela, ninguém lhe dará ouvidos. – Serei um túmulo. – Muito bem. Há uma condição adicional, que considero aceita de antemão. Não irá me interromper. Seu silêncio é a aquiescência que procuro. – Fez uma pausa. – Por um acaso, totalmente sem importância para o que lhe direi, tive acesso a um segredo. Nunca usei essa informação, que poderá parecer-lhe tresloucada. Seu medo é deixar de existir. Pois bem, se o segredo ao qual tive acesso não for um engodo, tenho a solução. – Posso fumar, doutor? – Prometeu não interromper. Você não é fumante e eu não lhe emprestarei um cigarro. Ouça. Creio ter a fórmula de uma certa, digamos, continuidade. Para tanto, saiba que deverá se aproximar de uma criança, não qualquer uma e sim do lugar que o viu nascer, e segurar-lhe as mãos. Não pode ser parente, não me pergunte por quê. Terá, portanto, de segurar as mãos e pronunciar a frase seguinte... – Baixou a voz e murmurou algumas palavras. – Anote, decore e rasgue. Quando terminar a frase, você estará dentro daquele corpo jovem. Guardará algumas lembranças e alguns conhecimentos que já possui. Não me pergunte o que carregará consigo e o que ficará pelo caminho. O essencial é que a frase estará para sempre gravada na mente do seu novo eu. Percebeu que bastará repetir a operação indefinidamente e não mais ter motivo para temor algum? – E o que acontecerá comigo? – Se me permite a imagem, seu cronômetro ficará zerado e seus minutos serão contados a partir desse momento. Para os demais, terá sido vítima de um ataque fulminante. A criança nada perceberá, pois você terá lhe tomado o lugar. Enfim, subsistirá um misto daquela jovem criatura e do adulto inseguro que tenho à minha frente. É irrelevante saber por qual motivo não me submeti a essa experiência. Se insistir, direi que prefiro testar primeiro em alguém. Aceita ser cobaia? – É inacreditável. E... isso funciona? – Você será o primeiro a saber. – Mas, se recomeçar do zero, perderei a memória da minha vida atual! Estará cortado o vínculo com meu eu. Minha personalidade implantada num menino... – Quem me revelou o segredo disse que as personalidades se somarão. O principal de sua bagagem será salvo. – E se não for verdade? – Vai recuar? – Preciso pensar. – Pois pense à vontade. O tempo acabou. Creio que não nos veremos mais. Sei que aceitará. Tenho certeza disso. Como lhe disse, dou-lhe alta. Se um dia um menino vier me contar algo incrível, saberei que você conseguiu. Se eu não for procurado, ficarei na dúvida. Até um dia. Acerte seu saldo devedor com minha secretária. Não ficará bem ela tentar cobrar de um menor com paradeiro desconhecido. Concorda? Desta vez duas mãos úmidas trocaram um demorado aperto. Seguiu-se um fim de semana cheio de hesitações e alucinações. Sabia que iria tentar. Decorou a frase, repetiu-a à exaustão, mas, em vez de rasgá-la, colocou-a no livro que acabara de ler. Pensou em deixar tudo registrado num envelope lacrado “a ser aberto somente em 2050”. Desistiu. Não desrespeitaria a promessa. O absurdo maior daquela receita extravagante era ter de regressar depois de décadas a um lugar do qual mal se lembrava. Liquidou seus investimentos, fechou suas contas, transformou tudo em dinheiro vivo escondido no cofre de sua casa. E comprou uma passagem de ida e de volta para Bucareste. Uma quantidade avassaladora de perguntas o assaltaram. E se a experiência lhe fosse fatal, o que aconteceria com aquele dinheiro, do qual nem ele nem seus filhos poderiam desfrutar. Resignou-se. Do mundo nada se leva mesmo. E se, pelo contrário, a tentativa fosse bem sucedida, como regressaria, na condição de menor de idade – qual a utilidade da passagem de volta? - supondo que não perdesse a memória? Uma demora prolongada significaria o arrombamento do apartamento, o sumiço das suas economias, obviamente fora do alcance do aprendiz de feiticeiro no qual se transformara. De qualquer maneira, levaria consigo o suficiente para garantir seu regresso, que se danasse a passagem correspondente à volta. Percebeu que estava diante de uma impossibilidade. A criança romena, cujas feições tomaria, não poderia voltar usando o passaporte dele. Seria impossível sair da Romênia, e tão ou mais difícil regressar à terra cortada pelo Trópico do Capricórnio. O máximo que conseguiria seria uma surra dos seus novos “pais”, que jamais entenderiam a estripulia. Teria de apoiar-se em algum amigo de infância, a quem teria de contar ao menos em parte... Impossível. Além de desrespeitar a palavra dada, de duas uma: o amigo acreditaria e claramente solicitaria uma carona nesse projeto maluco e para tanto teria de se apoiar num terceiro, que por sua vez incluiria, outro e mais outro, e acabariam todos presos por pedofilia, ou então, nem daria atenção, muito menos entregaria ao menino desconhecido, no qual L. teria se transformado o dinheiro e o passaporte inútil. Quem não arrisca... O lado jogador de L. prevaleceu. Reservou um quarto no Hotel Lido, seu sonho de consumo quando criança, e embarcou. No avião, no aeroporto de Otopeni e a caminho do hotel, repetiu para si mesmo que estava cometendo uma insanidade, mas como nada daquilo que o psi dissera poderia acontecer, a aventura se saldaria com uma volta instigante ao passado. Algumas décadas e alguns terremotos haviam modificado a cidade, mas não o suficiente para que L. não reconhecesse o centro velho. Achou a cidade escura e o trânsito, caótico. No dia seguinte, após uma noite mal-dormida, caminhou pela cidade, e passou pela Strada Sperantei. O prédio estava lá. Pior sorte teve a casa vizinha, transformada num monte de entulho, pelo terremoto. Sem demora, caminhou rumo a Rua Italiana – algumas dezenas de metros apenas - e postou-se em frente ao Liceu Spiru Haret, seu antigo colégio. Da calçada oposta examinava as crianças alegres que saíam. Um rapaz chamou-lhe a atenção. Possivelmente pela impressionante semelhança com outro menino, o das perguntas sem resposta, ou teriam sido os óculos? Sentiu um impulso muito forte de abraçá-lo e atravessou correndo. O carro, vindo em alta velocidade, fazendo a conversão da Strada Otetari para a Strada Italiana, não conseguiu frear a tempo.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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