No claro-escuro do quarto hospitalar, silêncio absoluto, a não ser pelo zumbido de uma aparelhagem que mal vislumbro. A ciência médica mobilizou-se na operação-resgate deste corpo sofredor. Como vim parar aqui é uma pergunta que não me faço, mas, seguramente, deve ter havido uma boa razão. Ouço o ruído da abertura de uma porta. Uma enfermeira, sem dúvida. Passos se aproximam. Não é uma enfermeira. É uma senhora, com um vistoso vestido de tafetá preto. Saberia definir sua idade se prestasse menos atenção a seu decote do tipo “liberdade condicional”, que resplandece apesar da penumbra, ou por causa dela. À medida que chega mais perto, devo admitir, mesmo no estado em que me encontro, que se trata de uma belíssima mulher. Em suas mãos, uma estranha engenhoca, uma espécie de televisão portátil. Sem nada dizer, senta-se na borda da cama. Com um sorriso apenas esboçado, compatível com meu estado atual, preocupada decerto em não agravar meu quadro, informa que aquele aparelho contém um resumo de minha vida e que, juntos, poderíamos rever os capítulos que eu quisesse. Com certeza, ela dispõe de uma espécie de tecla avanço e retrocesso rápido, para fazer correr tudo de maneira célere. Para quem já ouviu e leu tantas vezes que, nos últimos momentos neste planeta, aquele que está prestes a evadir-se revê, em frações de segundo, sua existência, não deixa de ser uma revelação apavorante. Fraco consolo ter o apoio da tecnologia nessa situação. Meu coração dispara. Será quê? Não ouso completar meu pensamento. Aparentemente, ela notou a manifestação do meu medo pânico, sem precisar olhar o monitor enlouquecido colocado na cabeceira da cama. Gentilmente, responde à pergunta que não cheguei a formular. Não é nada disso, procura me tranquilizar. Trata-se de uma oportunidade de escolher, em diferentes momentos do passado, as opções que, naquelas circunstâncias, deixei de fazer. “Algo como naquele filme de Frank Capra com James Stewart, A felicidade não se compra?”, pergunto. Ela sorri e dá de ombros. Pode ser. Essa aí nem deve ter assistido àquela joia. Manda-me apenas interromper o “filme” quando achar necessário. Aquiesço. Depois de algumas passagens insignificantes, aparece a cena do meu primeiro beijo, num baile de carnaval. Peço para voltar uma hora atrás, para que o primeiro e tão importante beijo se destine àquela menina da qual gostava tanto e que, por acanhamento, perdi para sempre. A cena volta e vejo-me abraçando-a desajeitadamente, ouvindo dela uma doce reprimenda por ser tão tímido. Por onde andará? Prefiro não saber. Continuará desempenhando apenas o papel de sombra exilada num cantinho escuro da minha memória. À minha pergunta muda, a visitante responde que podemos prosseguir. Nem preciso falar, basta pensar e a máquina se detém no momento escolhido. Mando-a parar na cena do meu casamento quando, por falta de jeito, não consegui quebrar de primeira o tal copo. Agora, sim, com um movimento firme, esmigalho-o. Mazal-tov!, exclama a multidão de convidados. Chegamos agora à minha entrevista de admissão na empresa onde não havia sido selecionado. Já peguei o jeito e elimino a resposta sarcástica que selara minha não aceitação. O entrevistador cumprimenta-me e informa que deverei começar imediatamente. Imagino que poderia ter me saído bem naquela função que não cheguei a exercer. Continuamos. Não há razão para rever uma carreira que só existiu nos meus sonhos. Agora, estou me preparando para correr minha primeira maratona. Mais uma correção e evito aquele buraco no chão e o tombo que se seguiu. Concluo radiante... e exausto a prova. Alguns anos decorrem, sem que me ocorra fazer qualquer modificação. A visitante me olha intrigada. Na nossa linguagem muda deixo claro que não me agradaria alterar qualquer coisa. A quantas mudanças teria direito? Não sei nem perguntarei. Só espero que nenhuma me seja negada. Rapidamente, chegamos à estreia da peça de minha filha, e elimino as risadas que dei quando ela errou sua fala; substituo a gargalhada por aplausos em pé. O tempo voa na telinha sem que, a exemplo do poeta, lhe peça para que suspenda seu voo. A briga de casados, uma das poucas brigas sérias por causa da minha fixação pela Bolsa de Valores, sumariamente eliminada. Na oportunidade, aproveito a maré e troco, espertamente, uma ordem de venda por uma de compra. Nem por isso a qualidade do meu quarto de hospital melhora. Estranha gerência do passado que não altera o presente! Formulo, na nossa linguagem, o desejo de ver a cena do meu atropelamento — agora me lembro —, responsável por minha internação, mas minha implacável visitante afirma que, excepcionalmente, essa passagem está protegida e não poderá ser alterada. E eu que pensei ingenuamente poder livrar-me daquele quarto! Impossível driblar aquela mulher, ou seria meu destino? Em troca, oferece-me a possibilidade de ver uma, uma só, passagem no futuro. Peço, na nossa linguagem telepática, ver-me daqui a dez anos. Na tela aparece uma sucessão de bolhas de sabão, como aquelas idealizadas por Lygia Fagundes Telles. Estou dentro de uma dessas e, aparentemente, muito feliz. (*) Do livro A Luta continua, Ed. Letraviva
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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