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COLUNISTA
Alexandru Solomon
11/07/2015 - 15h04
Epístolas
 
 

Envelhecer com classe. Seguramente, Elza detinha um segredo, que teria transformado geriatras, cosmetólogos e psicólogos em milionários, caso ela resolvesse compartilhá-lo um dia. Cinco décadas bem vividas pouco ou nada — enfim, quase nada — conseguiram afetar-lhe o viço transbordante. Bem casada com um capitão de indústria, dividia seu tempo entre diversas atividades de voluntariado. Já que fora compelida a se tornar, de certo modo, um apêndice do marido, fato ainda comum nos anos sessenta, aventurar-se pelos meandros da profissão de advogado revelara-se uma impossibilidade. Uma espécie de proibição jamais formulada relegara-a à condição de mãe-de-três-filhos-esposa-à-moda-antiga. Com o passar do tempo, o papel de mãe foi sobrepujado pelo de “locomotiva” da vida social, admiravelmente cumprido, diga-se de passagem, e por uma questão de justiça. Não era sem motivo a observação “Atrás de um grande homem, pode haver uma mulher ainda maior”. Benemérita de diversas organizações, fundadora de uma ONG de nobres propósitos, figura eternamente sorridente ao lado do marido, conseguira sublimar a vacuidade inerente à ausência de uma atividade profissional. Ultimamente, sessões de malhação haviam ocupado as últimas horas vagas de dias sempre atribulados.

Quando Otávio lançou-se na política, Elza tornou-se uma mistura bem balanceada de coordenadora de campanha, promotora de eventos e degustadora de pastéis em feiras livres. Uma rápida passagem por Brasília só fez aumentar duas legiões estanques, a dos admiradores e a das invejosas.

Elza era uma mulher feliz? Impossível responder à pergunta. Ninguém saberia dizer o que se escondia atrás da égide do sorriso encantador. Para muitos, não havia couraça alguma, muito menos uma possível falha da armadura. Era, ou parecia ser, como sempre fora, uma fonte de espontânea e incontida alegria de viver.

Numa bela manhã, quando essa história se inicia, logo depois do café, um mordomo extraído de alguma obra de Bernard Shaw, entregou-lhe, numa salva — de prata, naturalmente — a correspondência do dia. Agradeceu e, sentada em frente à sua escrivaninha, passou em revista convites para coquetéis, pedidos de ajuda, o prospecto de um novo empreendimento imobiliário, além de tolices como o convite a integrar, sem perda de tempo, uma equipe de venda de cosméticos, prova cabal da desinformação do remetente. Acionou o controle remoto do aparelho de som e, enquanto ouvia os Prelúdios de Liszt, percebeu que deixara de abrir um envelope. Com um sorriso resignado abriu e notou tratar-se de uma carta manuscrita. “Mais um pedido de cadeira de rodas” — suspirou.

Não era bem isso. Leu e releu a carta sem data. Ao fim da leitura, o sorriso sumira.

“Elza,

Penso que irá me perdoar pela petulância, que se inicia ao chamá-la pelo seu nome. Quanto ao meu, pouco lhe dirá. Se for muito curiosa, corra até o fim da carta, mas asseguro-lhe que é melhor seguir tranquilamente. Saiba que, há mais de três decênios, gravito numa órbita, em cujo centro sempre esteve.

Planeta sem luz própria, sempre tive a felicidade de receber, ainda que de forma inusitada, algum raio cintilante que involuntariamente, me enviou. Fico um pouco constrangido pela banalidade dessa metáfora. Juro que sei fazer melhor, mas, tímido incurável que sou, algo me retém. Colega de faculdade de Otávio — e um dos poucos a poder chamá-lo de Tavico — continuei como uma espécie de conselheiro para assuntos vários. Desprovido de ambição? Penso que não. Talvez tenha me faltado coragem durante essa caminhada. Pouco depois de valer seu primeiro milhão, T. (prefiro designá-lo apenas por essa inicial (ambos saberemos de quem estou falando) a conheceu. E eu também. Até aquele momento, além de administrar-lhe a fortuna crescente — e sempre tive carta branca para isso, ou quase sempre — eu redigia todos os pronunciamentos de T. Quer se tratasse de discursos na Federação das Indústrias, de cartas aos acionistas, ou de correspondência de maior responsabilidade, eu escrevia, T. assinava. Quando a conhecemos, ambos nos apaixonamos pela mulher encantadora que nunca deixou de ser, desde então. Perdoe-me o atrevimento, mas neste final de século XX essa revelação tardia nada possui de chocante. Ironia suprema. Confidente de T., passei a escrever as cartas de amor que ele lhe dirigia. Era tão fácil. Bastava colocar naquelas linhas toda a paixão que enjaulara e sonhar com o efeito que essas cartas produziriam. Não tive de sonhar por muito tempo. Pouco depois, começaram a chegar suas respostas, cada vez mais encantadoras. T. mal as olhava, preocupado com seu quinto milhão de dólares, possivelmente. `Responda e capriche, amigão´. O `amigão´ caprichava, ganhava elogios de ambos, sobretudo de sua parte, já que T. estava próximo do seu décimo milhão, sem tempo a perder com água e açúcar, na expressão dele. Eu evitava os espelhos para não me deparar com uma imagem que me envergonhava — a do próprio rosto.

Casaram-se. O centésimo milhão chegou. A vida de T. tornava-se cada vez mais atribulada. Eu já não era mais o administrador único da dinheirama, nem teria feito sentido. Continuava encarregado das correspondências mais delicadas, como, por exemplo, justificar para a esposa as ausências, com toques adulterinos, do marido. Docilmente, submetia-me a isso, por achar que a revelação da verdade, além de constituir uma deslealdade com T., a afastaria de ambos. Veja só que forma distorcida de pensar ou de arranjar pretexto. Maldita racionalização!”

Elza parou, apanhou em cima da escrivaninha seu pequeno espelho veneziano e, na onda de calor que a invadiu, encontrou a justificação para o rubor extremo do rosto. Sempre achara as cartas de Otávio muito mais apaixonadas do que o autor e imaginara que o lado romântico do marido se encastelara nas missivas, sobrando para o convívio do casal um arremedo de paixão, cuja quase extinção coincidira com a chegada do ducentésimo milhão. Prosseguiu a leitura.

“Chego agora à parte mais penosa da carta, se é que já não a rasgou. Não penso ainda ter-lhe dito o quanto a amo. Escrevi sim, sempre com páthos, mas desempenhando o papel de ventríloquo. (Até me diverte a idéia de falar em ventrígrafo, já que não falava, apenas escrevia — não procure a palavra acabei de criar). Chegou a hora de dizer que a amo, sempre a amei desde nosso primeiro encontro — no baile do terceiro ano de sua faculdade. Dançou com ele, eu passei a noite em claro, sonhando com aquele Danúbio Azul no qual teria me afogado — se de lágrimas fosse. Acho que foi o que T. escreveu. Não foi? Eu sei que `escreveu´. E provável que nunca tenha me visto, ou se me viu, seu olhar atravessou-me indiferente. Não me casei por diversos motivos dos quais o principal foi esse — até agora — amor inconfesso. Parece-lhe piegas?

O que tenho em mente? Não cometerei a torpeza de lhe propor um encontro, motivado pela revelação de algumas evidências de comportamento — vamos chamá-lo de heterodoxo — de T. Gostaria de encontrá-la, depois de tantos anos, durante os quais permaneci distantemente próximo. Gostaria de tantas coisas que me elevam acima da mediocridade mortal e que mal ouso confessar, pois sei que, se chegou até esse ponto na leitura, me entende. Tudo se passa como se nesta carta existissem alguns marcos, que, uma vez ultrapassados, sem a destruição da epístola, justifiquem minha esperança, e alguma ousadia.

Sei que na sua situação ter apenas muito cuidado, e não infinitos cuidados, é dar mostra de imprudência. Querida Elza, limito-me a chamá-la assim — mesmo porque adorada Elza ainda seria pouco — peço que me responda de uma forma diferente. Caso tudo isso venha a fazer algum sentido para você, responda enviando um envelope vazio. Para saber se deseja prosseguir — nem sei dizer ao certo o quê — coloque uma marca verde no envelope, caso contrário uma marca vermelha. Não coloque remetente na carta e envie para a caixa postal 63536.

Imploro que em hipótese alguma deixe de responder. O conteúdo de um envelope vazio jamais irá comprometê-la, se é que minha palavra não basta. Suplico que nada escreva. Se receber uma bola verde, tornarei a escrever. Aguarde.

Seu, desde sempre adorador,

A.“

Concluída a leitura, Elza mergulhou naquilo que os titãs da literatura, se consultados, chamariam de “abismo de reflexões”. O motivo não era a evidência adicional de ter vivido, nos últimos anos, se não desde sempre, um simulacro de vida conjugal perfeita. Não era tampouco a descoberta da existência de passos em falsos de Otávio. Em termos de passos em falso, aparentemente, o espelho retrovisor poderia ter lhe revelado uma rebuscada coreografia. Declarou-se vencida, ao perceber que a impecável armadura derretera como vulgar manteiga colocada sob o sol do meio-dia ante a revelação de uma recôndita paixão. Não pôde evitar um sorriso. Aquele A., através das palavras, a estava conquistando pela segunda vez, depois de um intervalo extenso como uma vida. Poderia pensar numa aventura? Talvez. Não hesitou um momento sequer, e enviou o envelope vazio marcado por uma enorme bola verde. Ao menos, estaria mostrando no misterioso código do seu cúmplice o quanto aprovava o plano. Evitou procurar saber quem era A. Preferia ser surpreendida. De noite, durante a recepção que Otávio ofereceu ao cônsul da G.... mal conseguiu dependurar um sorriso forçado, no canto da boca, para não permitir que sua emoção transparecesse.

No dia seguinte, o impecável mordomo poderia, decerto, ter estranhado a pressa com a qual Elza se atirou, literalmente, em cima da salva de prata na qual trouxera a correspondência. Não o fez, por ser pago, e muito bem, para que nada o espantasse.

Não havia carta nenhuma. O misterioso A. teria desistido? E se aquilo não passasse de uma armadilha? Bobagem, desde quando uma bola verde num envelope indicaria a propensão a acolher, remotamente, ou não tão remotamente, a hipótese de uma traição?

Mais dois dias se passaram. Emoção, procura, decepção.

No terceiro dia, o mordomo, já acostumado com a recepção febril da correspondência teria notado, não fizesse parte de suas atribuições a completa indiferença, o sorriso de triunfo causado por determinada carta.

Elza o dispensou apressadamente, e uma vez só, abriu e leu outra carta sem data:

“Minha adorada Elza,

Temo tê-la magoado. Logo entenderá por quê. Peço, humildemente, seu perdão. Serei breve.

Suponho que tenha formulado a pergunta: se durante esses anos todos não me atrevi a declarar minha paixão por uma questão de, justificada ou não, fidelidade canina a T., o que estaria me impelindo agora? Há uma razão muito simples. Por ser um romântico incorrigível, sempre aferrado a princípios éticos totalmente fora de moda, nunca teria me atrevido a escrever-lhe em vida. Está entendendo, meu amor? Essa carta, para usar uma imagem que faz todo o sentido do mundo, neste instante em que a lê, é apenas a luz de um astro morto.

Acometido por uma doença incurável, deixei instruções precisas ao meu advogado. Determinei que mandasse a primeira carta um ano depois de minha morte e, caso recebesse bola vermelha, queimaria esta segunda carta. Se ela chegou às suas mãos, que jamais tocarei, é por ter havido de sua parte a sinalização clara de que minha vida inteira não passou de um sonho que, agora, recebe sua recompensa tardia e inútil. Não haverá encontro nenhum.

Assim quis o destino. Seja feliz para sempre

Alexandre Mendes“

Uma lágrima teimosa burlou o vigilante autocontrole de Elza. Outras mais se seguiram, numa torrente incontrolável. Acabara de perder, sem nunca ter tido, algo precioso. “Assim quis o destino” — murmurou.

De noite, com ar despreocupado, perguntou ao marido:

— Querido, você teve um funcionário Alexandre Mendes?

— Elza, se posso me orgulhar de alguma coisa é de saber o nome de todos os meus colaboradores. Esse nome não me diz absolutamente nada.


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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