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COLUNISTA
Alexandru Solomon
08/02/2015 - 13h14
Domingo no parque
 
 

O rei das brincadeiras era o José. Uma boa alma, amigo de todos. Sempre alegre, mesmo se nada pudesse justificar essa alegria. Dava duro feito um condenado a semana inteira, verdadeiro rei do almoxarifado da empresa. Sabia o esconderijo de cada peça. Muito melhor que o custoso sistema implantado pelos senhores de gravata e fala complicada. Antes dos alarmes do pessoal do planejamento, lá ia José falar com os compradores: ‘Ó, daqui a quatro dias irá faltar tal peça’. E era melhor que acreditassem nele... Bobo ninguém é, confiavam no taco dele. O dono da firma gostava muito do trabalho do José. ‘Você tem de fazer um curso, rapaz. Com a cabeça que tem, irá longe’. Só que o tempo foi passando. José não foi muito longe, mas gostava do trampo. O velho se afastou. Vinha só de vez em quando. No seu lugar, o genro. Boa gente ele também, cheio de idéias novas. Encurtando, uns dois dias atrás, José descobriu que um dos significados da palavra ‘racionalização’ era: cada um pro seu lado.

Sexta-feira chata aquela. Foram mais do que corretos. Não precisariam ter agido assim de surpresa, mas que diferença faria? Prometeram pagar todos os direitos e, por cima, as férias tiradas só no papel. Férias de verdade? Uma vez só em quinze anos, ao casar. Veio também um envelope marcado ‘Confidencial’ com um cheque da conta pessoal do velho. Não apitava mais, mas tinha bom coração.

Despediu-se dos amigos, ou seja, de todos. Não tinha inimigo algum. Avisou ainda o Tião de compras que as arruelas de três oitavos estavam no talo. Pegou suas coisas do armário, colocou numa sacola de plástico. Tchau, turma. Se alguém na portaria lhe tivesse pedido para abrir a sacola, metia-lhe a mão na cara, com certeza. Não foi preciso.

Pronto, no olho da rua após quinze anos. Uma grana na conta, paga até antes da liquidação no sindicato, mais alguma coisa viria do fundo e uma pá de problemas na cabeça. Tinha o fim de semana para botar as idéias em ordem. O sábado foi um horror. Aí, no domingo, resolveu passear no parque. Ninguém reclamou quando avisou que não queria companhia. Todos entenderam.

De calção, camiseta e boné. Manhã bonita e clara. Faltava um pouco para as sete horas. Aquele horário era o melhor para dar uma corridinha. Desempregado corre melhor, pensou. Juntou-se a um grupo. Não se conheciam, mas corredor é tudo irmão. Já estavam papeando, tirando um sarro de um loirão corintiano. Aproveitou e tirou também sua casquinha. As pernas queriam mais. Deixou-os para trás com facilidade. Estava a toda, dando a volta do lago. Logo em seguida, bateu uma espécie de desânimo. Diminuiu o ritmo e passou a caminhar. Que droga! Arrumar emprego agora não ia ser mole. O grupo o ultrapassou. O loirão ainda provocou: ‘Como é, acabou o gás?’ Tudo numa boa, gozação de corredor. Nem ligou. Resolveu sentar na grama. Tirou o boné. De repente, sentiu-se pequeno, ameaçado, indefeso. Pareceu-lhe que todo mundo já sabia do seu problema e evitava olhar na sua direção. O que iria fazer? As prestações...

Num gesto de raiva atirou o boné, com a logomarca da firma – talvez por isso a raiva toda – ao longe. Fechou os olhos. Ouviu uma respiração apressada a seu lado. Abriu os olhos e viu um cachorrão. Devia ser pastor alemão. O bicho tinha trazido o boné de volta e estava sentado fitando-o, como se esperasse a aprovação pelo feito.

– Poxa, amigão, obrigado! – José estava novamente de bom humor.– Quer dizer que não posso me livrar disso. Vamos ver se me livro ou não. Arremessou novamente, sem raiva, desta vez, o boné. O cachorro partiu, feito uma bala. No seu ímpeto, já ia passar além do boné. Brecou fazendo girar o rabo e voltou todo orgulhoso com o troféu. Deixou-o aos pés de José, sentou e o encarou, varrendo o chão com o rabo. Queria mais. Se era para se livrar do boné não seria atirando-o. José se levantou e, imitando o pessoal que jogava aqueles discos de plástico, mandou ver para longe. Enquanto fazia menção de se levantar, o cachorro, que já estava pulando para um lado e para outro, mantendo as patas traseiras no chão, saiu correndo e, desta vez melhorou o desempenho, pois apanhou o boné ainda no ar. Trouxe-o, visivelmente orgulhoso, olhar atento, a língua de fora.

Ah, é assim, é? José fingiu arremessar, mas reteve o boné. O cachorro ia disparar, as patas dianteiras já estavam no ar, mas, como pressentindo o trote, se deteve e latiu indignado. Era sua forma de protestar. Parecia querer dizer: ‘Comigo não’. Nada bobo ele. José repetiu a brincadeira algumas vezes, até que o parceiro, em vez de soltar o boné, como das outras vezes, deitou e colocou, ofegante, uma pata em cima da presa, decretando o fim da diversão. Estava cansado. José olhou com mais atenção. Tanto quanto entendia, era mesmo um pastor alemão. Um ‘capa preta’. Surpreendeu-o a extrema magreza dele. Talvez por isso o cansaço. Reparou na presença da coleira. Não era um cão de rua. Teria sido abandonado? Com certeza, estava perdido, e já fazia algum tempo. Bastava olhar o pêlo sujo da barriga. Abandonado ou perdido. Como saber?

– Vamos comer algo? Começou a caminhar. Imediatamente, o cachorro colocou-se à sua esquerda e se pôs a andar. José deu uma acelerada. Foi acompanhado. Deteve-se. O cachorro parou e sentou. Com certeza, o bicho tinha passado por um treinamento. Semelhante disciplina ele só vira antes nas demonstrações de cães policiais, ou nos vira-latas que acompanham carroceiros. Como é que esse pobre diabo fora parar ali? Com certeza seguira uma cadela no cio. Até gente cai nessa e perde o rumo. Aí, adeus ensinamentos. ‘Será que foi isso, espertalhão? Ou então seu dono quis se livrar de você?’ Chegaram perto de um carrinho de cachorro-quente. José comprou um e olhou de soslaio. O cão, sentado à sua frente, parecia fascinado. Imóvel, olhar suplicante. Um filete de baba escorria, oscilando ao sabor do vento. ‘Vamos dividir como irmãos?’ perguntou José. Ficou com pena, ao ver a velocidade com a qual o ‘irmão’ devorou a metade que lhe fora oferecida. ‘Toma pega o outro pedaço’. Um olhar brilhante, lançado pelos olhos castanho-escuros foi o agradecimento. ‘Meu, assim não dá. Precisa ir devagar’. Depois do segundo cachorro-quente, as coisas melhoraram.

– Que faço com você? Abandonar é que não vou. E primeiro, vai ganhar um nome. Que tal Ástor? Vamos ver se pega. Ástor, vem!

Obediente, o cão se colocou à esquerda de José e esperou.

– Vamos dar uma volta. José e sua sombra estavam dando a volta do lago. Passaram perto de uma senhora que começou a gritar.

– Segure o cão. É um absurdo passear com um cão desses solto. E se atacar uma criança, seu irresponsável! Não sabe ler os avisos? Esses cães assassinos...

– Desculpe, senhora. Afastou-se acompanhado de longe por uma lição de moral. Tá vendo, Astor? Não vai atacar ninguém, né? Não, acho que não vai mesmo. Você não é daqueles que deixam os amigos numa fria. Sabe que não gostei de Astor? Você não tem cara de Astor, tem cara de Rex. Aqui, Rex! A mudança de identidade não trouxe nenhum transtorno. Lá estava Rex, ex-Astor, acompanhando. ‘Você é legal, sabia? Muito legal mesmo’. Até que não seria má idéia levá-lo para casa. Não, seria loucura, só faltava isso. Onde colocá-lo? Ter de enfrentar o discurso do síndico, aquele chato de galochas, cheio de não-me-toques. Abandonar é que não podia. Olhou de novo. Rex o fitava, língua de fora, por causa do calor. As orelhas em pé marcavam os movimentos da cabeça, que se inclinava, como se tentasse entender os pensamentos de José. E aquele olhar... Droga, já tinha bastantes problemas; não queria mais um. Agora, deixar que Rex fosse apanhado pela carrocinha, nem pensar. Indiferente aos transeuntes e aos latidos de outros cães, Rex caminhava disciplinadamente. Merecia um afago. ‘Calma! Ele pode reagir’. Não resistiu à tentação. Aproximou a mão, deixou que Rex a cheirasse e depois começou a coçá-lo entre as orelhas. Rex abaixou-as para os lados. Parecia um avião. ‘Aí, garoto!’ De olhos fechados, Rex retribuía o carinho com uma espécie de ronronar. ‘Gosta de um carinho, né, malandro?’. José parou, pensativo. Imediatamente, a pata de Rex o tocou, autoritária. Queria mais. De tão autoritária, esbarrou no relógio. Diacho, passava das onze horas. Resolveu procurar um orelhão e ligar para casa. Depois de sair quase sem falar, ia contar sua aventura. Como será que receberiam a novidade? Leu o aviso colado no orelhão. – Cachorro desaparecido. Criança desesperada. Gratifica-se. Embaixo, o retrato de um cão – era Rex, sim, sem dúvida – e um número de telefone.

Droga, o cartão telefônico estava vazio. Azar, ligaria a cobrar. Alguns toques e a voz metálica pedindo aquelas bobagens: diga quem é e de onde está chamando. Na outra ponta desligaram. Tentaria mais uma vez e se não atendessem, paciência. Atenderam. Disciplinado, Rex ficou sentado.

– Alô, achei seu cachorro. Do outro lado da linha uma gritaria ‘acharam, mãe, acharam’. A seguir, um senhor continuou.

– Tem certeza de que é ele? Onde está neste momento? Ele tem uma coleira?

– No parque... Ah, é o próprio, sem dúvida.

– Ele tem uma coleira? Veja o nome. Não se preocupe, se for ele, não morde.

– Já somos amigos. Um instante a coleira está suja, não consigo ler. Deu. É Lobo.

– Viva! É o próprio. Estamos indo... Fique onde está. Ou melhor, vamos nos encontrar no portão velho, o da pracinha. Sabe qual é?

– Sei...

– Combinado? Pense numa gratificação.

– Tudo bem. Vou pensar.

Desligou e olhou para Rex. Mal o tinha encontrado, já eram amigos, mas teriam de se separar. Quem sabe, no futuro, poderiam tornar a se encontrar... Quem sabe? Acariciou a cabeça de Rex. Logo mais, deixaria de ser Rex, para voltar a ser Lobo. Sentiu-se novamente só. Prestes a perder um amigo.

– É, cara, vamos para o portão... Tá vendo? Seus problemas terminaram. Restam os meus, mas tudo se ajeita. Se achei seus donos, acharei o raio desse emprego.

Se houvesse ainda uma dúvida, o olhar confiante de Rex a teria dissipado.

Crônica do livro “Sessão da Tarde”, Edicon.


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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