Tem gente que conta carneirinhos para dormir. Nunca conheci ninguém que o fizesse, mas a imagem está presente na minha cabeça. Deve ter sido fixada na época da sessão zás-trás, cujos desenhos animados moldaram parte da minha cultura. Quando tenho insônia, o que é raro, fico pensando na vida. Numa noite recente aconteceu. Problemas de saúde na família me fizeram alterar as horas de sono. Acabei indo para a cama fora do tempo, lá fiquei rolando. Não sei a razão, mas surgiu uma página na minha velha Olivetti, onde a palavra independência deveria ser separada em sílabas. Me pareceu correto escrever in-de-pen-dên-cia, entretanto ficaria melhor graficamente se eu escrevesse in-de-pen-dên-ci-a, com o a final na outra linha. Quando estava na quarta série do antigo ginásio, equivalente hoje à oitava série do ensino fundamental, lembro-me bem que dona Guiomar, minha professora de Português resolveria o problema sem titubear. Naquela época os professores do Ginásio do Estado ganhavam bem. Dona Guiomar era advogada, formada na São Francisco e tinha também o curso de letras da USP. Posteriormente se tornou juíza e abandonou o magistério. Depois de muitos anos, eu já adulto, não era raro encontrá-la nas imediações do Fórum, na praça João Mendes. Então tomávamos café e conversávamos sobre tudo, fumando um Minister. Naquele tempo todos fumavam. Como dona Guiomar já deu às de vila-diogo da esfera insana, recorri aos meus parcos conhecimentos da língua para terminar o texto e dormir em paz. Um homem precisa de paz para conciliar o sono. Se eu considerasse independência como proparoxítona, então deveria separar o último a, o que considero fora de cogitação, é deselegante. A outra opção seria considerar cia como a última sílaba. A página ficaria assim, na linha superior independên-, e, na continuação cia. Nesse caso a palavra não seria proparoxítona e sim paroxítona. Mas, com a ressalva de ser uma paroxítona terminada em ditongo crescente, portanto, corretamente acentuada. A questão passou a ser ditongo ou hiato? O assunto foi perdendo interesse e forma quando comecei a sentir as pálpebras pesadas e notei que da nuvem ao lado um homem de branco me acenava. Olhei bem e reconheci a cena familiar. Aeroporto de Fiumicino, 1985. Barrado por um cordão de segurança, atrasado para o vôo que me levaria a Milão, dei de cara com um senhor simpático que passava a um metro de distância, do outro lado do cordão. Ele me acenou e sorriu amavelmente. Era o Papa João Paulo II, que embarcava para a África. Da nuvem enfumaçada ele me acenou novamente e eu retribuí. Deveria ter acontecido com alguém de fé, que interpretaria como um sinal divino. Eu que não creio em nada, atribuo o fortuito encontro ao acaso, embora o sorriso do Papa tenha sido bem recebido e igualmente retribuído. Gentilezas fazem bem à alma.
Nota do Editor: Sidney Borges é jornalista e trabalhou na Rede Globo, Rede Record, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo (Suplemento Marinha Mercante) Revista Voar, Revista Ícaro etc. Atualmente colabora com: O Guaruçá, Correio do Litoral, Observatório da Imprensa e Caros Amigos (sites); Lojas Murray, Sidney Borges e Ubatuba Víbora (blogs).
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