Conversa (des)afinada
Quanto mais muda, afinal teremos um ‘novo’ governo, mais fica igual. Numa carta da Marta – a rima foi involuntária – a ministra saiu do ministério, tascando votos de sucesso à Presidenta. Para os amadores de Química o pH da carta situa-se perto de zero. Para os menos iniciados, trata-se de uma alta acidez. Apesar da aparente tranquilidade da destinatária, ao afirmar ter se inteirado previamente do conteúdo da missiva, essa acidez deve ter causado um uso adicional de Maalox ou outro antiácido disponível em Qatar. Dizia Marta, entre as demais fórmulas protocolares, que desejava à Dilma que “seja iluminada” – suprema ironia ao se dirigir a um poste – e que escolhesse uma equipe econômica independente, experiente etc. comprometida com uma “nova agenda de crescimento e estabilidade”. Ora, direis, mas o que mais se ouviu e viu durante a campanha foi um desmedido autoelogio à sábia política econômica, que aparentemente, com alguns retoques, um ajuste fino, vá lá, será matéria obrigatória dos livros de Economia daqui para frente. Mas a carta da Marta insinuava algo diferente. Talvez tenha sido escrita a quatro mãos com o marqueteiro do candidato derrotado. Procurando satisfazer a curiosidade dos repórteres quanto à composição da nova equipe, a Presidenta desautorizou boatos supostamente plantados por fontes palacianas: “O Palácio não fala. O Palácio é integrado por paredes mudas”, desmontando, assim, a prosopopeia insinuada pela audiência ávida por um furo. Logo, é errado atribuir a uma construção, por mais vistosa e pouco funcional que seja, qualidades humanas. Perfeito. As paredes são mudas, embora haja quem jure que possuem ouvidos. Dizem que alguém teria pensado com seus botões: Além de paredes mudas, não haveria por acaso um telhado de vidro? Voltando à nossa Pindorama, houve quem estranhasse o projeto de lei permitindo o desconto das despesas do PAC e das desonerações da meta fiscal. Estamos falando da LDO de 2014. De forma bastante lógica, é possível afirmar que se a última revisão for concluída em fevereiro de 2015, embora o passado seja coisa incerta entre nós, será possível dizer que as diretrizes orçamentárias foram obedecidas. Então qual é o problema? O tal superávit primário. Sim, aquela parcela destinada a pagar (parte) dos juros da dívida. É um conceito relativamente bobo, já que o ideal seria conseguir um superávit nominal, ou seja, depois de pagar os juros, sobrar algo. Mas se trata de uma abordagem “rudimentar” segundo frase atribuída à então Chefa da Casa Civil. Se non è vero, azar do goleiro. Grosseiramente, a superávit primários seria em escala nacional algo como o EBITDA (earnings before I tricked damn auditor) das empresas, ou LAJIDA. Ocorre que, anualmente, em meio a rufar de tambores anuncia-se que faremos um “primário” de algo como 2% do PIB. Mesmo insuficiente para fazer frente ao pagamento dos juros, o crescimento da dívida seria contrabalançado pelo crescimento do PIB e nosso “cadastro”, apreciado pelas empresas de “rating” (de classificação de risco, se preferirem) continuará bom. “O sujeito deve mais, mas possui mais um imóvel (quitado), então vamos conceder um empréstimo a juro camarada para ele comprar uma moto, pagar a empregada etc. Se ele dever mais e não aumentou o patrimônio vamos conceder o empréstimo, mas a juros maiores”. Simples assim. Sucede que as surpresas vêm de ambos os lados. O PIB não cresce o quanto trombeteiam as “otoridades” econômicas, em compensação a tal economia não se realiza nas proporções prometidas por culpa das despesas. O quadro perfeito para que chovam críticas. Daí, nossa criatividade partiu para um atalho. Já que não se conseguirá realizar a tal economia: a receita é “errática (apud Miriam Belchior) e as despesas (vigiadas com a lupa) teimam em se elevar mais do que o fariam se bem comportadas fossem, introduz-se um artifício. Parte dos investimentos passam a ser considerados tão virtuosos que podem ser descontados da tal meta anunciada em meio ao rufar de tambores e som de clarins no início do ano e “suavizada” à medida que o fim do exercício se aproxima. Não vai dar para pagar tudo isso de juros, porém, transpusemos o “velho Chico”. Então além das virtudes da moeda listadas pelo professor Gudin: instrumento de troca, meio de pagamento, reserva de valor, unidade de conta etc. surge o dom da ubiquidade. O mesmo dinheiro faria duas coisas ao mesmo tempo. Em 2014 falava-se em abater uns míseros 67 bi da meta. Agora, caso o liberou geral prevalecer, serão mais de 120, correspondentes ao investimento do PAC e às desonerações. Esse valor é superior à meta cheia. So what? (em original no texto) E daí? Daí, que não há mais sentido em falar em meta do primário. A meta será cumprida sempre, já que poderá sofrer abatimentos de 100% do valor. E por que não mais? Para que parar se estamos num caminho tão bom? Mais fácil seria reconhecer que no ano X não houve superávit e partir para outra, mas seria tolher a criatividade daqueles que imaginaram tão bela manobra. A quem enganará? A resposta ainda não está clara. Portanto a iluminação do poste viria em boa hora, sem necessidade de esperar a virada do ano. Admita-se o não cumprimento, afinal e meta não pode virar um eterno espartilho e, abandonando os esqueletos para as escolas de medicina, que se parta para uma administração responsável. Alguém falou em LRF. A exemplo de Scarlett O´Hara, nisso pensaremos amanhã.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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