Um trabalho de escola causou discussão e reflexão. O autor, inteligente e ativo chamava-se Étore e era meu colega. Não sei dele, nunca mais o vi. Na época éramos estudantes de arquitetura. Aconteceu por volta de 1970 ou 1971, difícil lembrar, já faz tanto tempo! Naquela época acreditávamos piamente e com muita fé que a arquitetura poderia mudar as relações de produção da sociedade, isto é, iríamos construir o socialismo com réguas t e lapiseiras seis b. A burguesia era o nosso alvo. Bando de conformistas vendidos ao american way of life, que era tudo o que detestávamos, embora usufruíssemos sem reclamar. Étore fez um belo projeto de uma casa burguesa típica, com os adereços da moda da época. Paredes de concreto com características brutalistas, isto é, erguidas com fôrmas de tábuas de pinho para mostrar as juntas e os nós da madeira. Pisos de epóxy e iluminação zenital nos banheiros e cozinha. E vidros, muitos vidros, enfim um absurdo climático que hoje seria incompreensível. Nossos projetos pareciam miniaturas do prédio da FAU e de obras de Paulo Mendes da Rocha. Na entrada da casa Étore colocou um longo e tortuoso túnel. Parecia a entrada de um iglu, com pé direito de um metro e dez, no máximo. No memorial descritivo justificou o desenho com a máxima de que o que é difícil de se obter, dá mais prazer. Assim, o burguês cooptado pelo sistema chegaria em casa após o trabalho e se arrastaria pelo túnel para então adentrar ao magnífico espaço cultivado em anos de pesquisas de estudiosos da Bauhaus. Quem sabe ficaria com vontade de fazer a revolução. Não sei, provavelmente tomaria um scotch e ouviria discos de jazz, mais apropriado ao status de burguês refinado, capaz de morar numa casa brutalista sem conforto térmico. O turista que chega em Ubatuba pelo portal da Lagoinha também sofre, como o burguês progressista sofria. Apenas o sofrimento é de outra ordem. O turista é acometido de mal-estar estético, sensação difícil de descrever. A visão do imenso bigode é terrível. Quando se dá o impacto o indivíduo se sente desamparado. Se o desconforto visual for acompanhado de certas músicas de sucesso o problema se agrava. O QI acaba reduzido em dez pontos, para que haja acomodação intelectual com o entorno. Nesse caso só resta parar na próxima banca de jornais e comprar um exemplar da revista Caras. E depois, quando a noite chegar, assistir ao Big Brother Brasil. Enjoy it!
Nota do Editor: Sidney Borges é jornalista e trabalhou na Rede Globo, Rede Record, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo (Suplemento Marinha Mercante) Revista Voar, Revista Ícaro etc. Atualmente colabora com: O Guaruçá, Correio do Litoral, Observatório da Imprensa e Caros Amigos (sites); Lojas Murray, Sidney Borges e Ubatuba Víbora (blogs).
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