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COLUNISTA
Alexandru Solomon
15/09/2014 - 15h00
Um banquete
 
 
Conversa (des)afinada

(Perdão, Platão)

A cena se desenrola num restaurante de São Paulo. Os comensais, em número de três, debatem acaloradamente – ou nem tanto – a atual conjuntura brasileira. Estão presentes: Lucy, que conseguiu uma autorização especial do CIL (Centro de Integração da Lucy – para aqueles que acabam de chegar, Lucy é aquela nossa ancestral, que resolveu visitar-nos, mercê de um trabalho árduo para o qual contribuiu uma plêiade de cientistas) para participar da ágape, este escriba e um amigo, cujo nome não será declinado. Um pouco intimidada pelo ambiente com o qual não estava acostumada, Lucy guarda um obsequioso silêncio. O amigo, cujo zelo por preservar o anonimato será respeitado, resolve interromper a tediosa tarefa de devorar a entrada e decide monologar:

– Só há duas explicações para as acusações trocadas pelas candidatas à Presidência, quanto a ser a oponente a ‘candidata dos banqueiros’. Descartando a hipótese de elas não terem preparo suficiente – o que seria lamentável, mas nem de todo improvável – resta a hipótese de ambas se valerem do fato de pelo menos 90% do eleitorado padecer de uma total falta de conhecimento. Isso não é novidade. O preconceito é anterior à publicação do livro de Gustavo Barroso, Brasil colônia de banqueiros, da década de 30 do século passado. É indiscutível o ranço medieval dessas ideias. É tão cômodo demonizar banqueiros, escondendo a incompetência ou a má-fé dos governantes. É tão fácil praticar esse tipo de terrorismo... e rende Ibope. Enquanto a mercadoria for batatas, vergalhões ou petróleo, os ganhos são admissíveis. Quando a mercadoria for dinheiro, tudo muda. Há séculos de obscurantismo por trás disso.

Lucy arregalou os olhos, sinal de espanto e de interesse.

– Então, a Presidenta resolveu chutar o pau da barraca, como dizem vocês.

– Pior, ou igual, ela se vale do tal preconceito enraizado na população, para expor à execração a concorrente que ameaça o projeto petista de perpetuação no poder. Tudo na linha da tal subserviência imaginária aos ricos e poderosos que querem o mal pelo mal. Note que ela bate na candidata que a ameaça, não ataca o mocinho das Alterosas, pelo menos, ao atacá-lo, não usa esse clichezão.

Nisso apareceu o garçom, trazendo o repasto frugal. Os três estão fazendo regime.

Arrisquei uma pergunta, mesmo sabendo que alguns maldosos poderiam ver nisso um crime eleitoral:

– Meu amigo, em quem pretende votar – sei que o voto é secreto e que sua intenção de voto poderá se alterar.

A resposta veio de imediato.

– Votarei na Dilma que tirou milhões da miséria e fez do Brasil um país como nunca antes se viu.

Entreolhamo-nos, e assim que ele se afastou, sugeri privá-lo da gorjeta, plenamente dispensável, já que habitantes do Brasil-maravilha não precisariam dessa insignificância. De nada adiantaria falar em crescimento anêmico do PIB e nos truques contábeis absolutamente ridículos, da equipeconômica (perdão Elio Gaspari) já que para os desinformados aquilo nada representa e para quem entende minimamente do assunto o engodo não funciona.

Após sorver um gole da capitosa bebida que encomendara, meu amigo prosseguiu:

– Merece apoio a ideia, bandeira de extremistas, de auditar a dívida interna. Assim, será possível descobrir, por exemplo, o quanto o Tesouro teve de se endividar pagando juros à taxa Selic para injetar no BNDES, que por sua vez financia a juros que representam algo como a metade disso, prática elegantemente apelidada de anticíclica. Dessa maneira há caras de peroba que afirmam que a dívida líquida não aumenta, já que a cada real colocado no BNDES corresponderá um real aplicado num financiamento virtuoso. A diferença de taxas e o prejuízo resultante são meros detalhes. Este ano, por exemplo, representam mais do que a generosa Bolsa Família.

– Essa é uma novidade? – quis saber Lucy.

– Não, caro primata, não tem o mérito da originalidade. É a volta de uma prática nociva, a tal Conta movimento do Banco do Brasil.

– Sei lá o que era isso.

– Não se preocupe, nem o garçom sabe. Vamos voltar ao nosso papo. A dívida interna é financiada não por banqueiros e sim, na sua maior parte por pessoas físicas e jurídicas. A dívida não está nas mãos dos insaciáveis banqueiros. Os nossos abutres são investidores.

Outro gole, um estalar de língua, e meu amigo prosseguiu:

– E não pensem que falhas conceituais partem de personagens insignificantes. Até o fim da vida o ex vice José Alencar dirigia vitupérios aos juros altos – dos quais as suas empresas se beneficiaram na ponta aplicadora. O grande Ulysses Guimarães achava que, pelo montante de juros já pagos, a dívida pública estaria quitada, até ouvir do professor Delfim Netto que se assim fosse, inquilinos poderiam reivindicar a posse dos imóveis.

Lucy fazia esforços visíveis para acompanhar a conversa. Tamborilava sobre a mesa, sinal de extrema atenção. Finalmente arriscou:

- Mas os juros precisam ser altos?

– A dosimetria dos juros já faz parte do lado artesanal da gestão. Adianto que não é obra de sádicos desalmados.

O BC poderia praticar juros menores, caso não houvesse o descontrole das despesas do governo, sendo a prática dos juros altos a única ferramenta para tentar domar a inflação, já que a indisciplina fiscal, que não precisa ser demonstrada, atua no sentido oposto. Enfim, apertar o acelerador e o breque pode render um cavalo de pau!

– Mas a dívida sobre a qual se paga juros não é a dívida líquida, não? – perguntou Lucy. É a dívida sólida?

– Quase isso. Chama-se dívida bruta. O montante de juros pagos é muito grande. Para diminui-lo é preciso economizar. Por isso fala-se em superávit primário, que é a economia – ou diferença entre receita e despesa – que o governo faz para abater dos juros. O ideal seria ter superávit nominal, ou seja, essa economia estaria cobrindo o montante de juros e sobraria algo para amortiza o principal. Estamos muito longe disso. Até recorremos (recorremos? Não! Quem recorreu foi a turma do ‘nunca antes’) a alguns artifícios, como por exemplo, considerar alguns investimentos tão virtuosos que seu valor nem precisa ser deduzido do tal superávit.

– Ah, então gasta-se mas não levamos em conta? Lucy já preenchia os requisitos suficientes para integrara a atual equipe econômica.

– Exato. Há muita filosofia por trás disso. Há quem ache válido.

– Mas isso não diminui os juros – Lucy tinha poucas ideias, porém, fixas.

– E quem teria a paciência para dar ouvidos a essas noções elementares e dedicar alguns instantes à análise? Os eleitores? A Moody´s? – concluiu meu amigo.

Lucy arriscou um trocadilho:

– A Moody´s não é Surdis.

– Para concluir, nunca vi peça publicitária mais mentirosa do que a obra ‘Santânica’ falando sobre a independência do Banco Central – quatro executivos brincando e a seguir, na mesa do trabalhador uma comida que some. É uma obra prima de má-fé, bem na linha do “eles” – os perversos ‘eles’– que querem promover o arrocho e o desemprego. Est modus in rebus. Há limites que a decência impõe à engabelação.

O garçom trouxe a conta.

Do alto da erudição recém-adquirida, Lucy perguntou:

– Vamos voltar à pergunta: – Em quem pretende voltar?

– Sabe estou em dúvida entre a Dilma e o Fidelix.

Assim que ele se afastou, decidimos por unanimidade que ele merecia a gorjeta.


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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