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COLUNISTA
Alexandru Solomon
22/08/2014 - 07h03
Matemática
 
 

Alguns prédios já nascem feios. O tempo apenas acentua-lhes a feiúra. Não era o caso daquele edifício, no bairro do Bixiga. Ele já tivera seus dias de esplendor. Um elevador vetusto, com porta pantográfica, levou-me de maneira hesitante ao quarto andar. No corredor mal iluminado, pude distinguir algumas portas, cuja tinta descascada emprestava um tom de aflição ao cenário. Segui as instruções e toquei a campainha do “último apartamento do lado direito de quem sai do elevador”. Um toque. Nada. Insisti e percebi que, pelos ruídos vindos do outro lado da porta, algo estava acontecendo. “Já vai”. A porta se abriu, e um sujeito alto, magro, com vasta cabeleira branca atendeu. O rosto impressionou-me pelas rugas profundas que o sulcavam, bem como pela barba grisalha, por fazer. Não usava óculos e lembro-me, como se fosse hoje, de como o azul claro dos olhos iluminava-lhe as feições. No mais, a aparência combinava com a do imóvel.

Convidou-me para entrar. De relance, notei a calça de flanela um pouco puída. A camisa esporte de mangas compridas, sem dúvida fora elegante num passado remoto; agora, apenas impecavelmente limpa, com um colarinho de longas pontas. Hoje, posso dizer que ele nutria uma firme preferência por esse tipo de colarinho. O que mais me impressionou, naquele momento, foi o ar de tristeza que seu sorriso traía.

— Então, o que o traz? — perguntou o dono do sorriso enigmático e dos faróis azulados.

O que me trazia? Ora, não havia mistério. Sempre fora bom aluno, o melhor da turma. O motivo era um prosaico sete na prova de matemática. O efeito daquela nota fora semelhante a uma explosão nuclear. Minha mãe me aconselhou a nada dizer, ao menos por enquanto. Senti, no entanto, que deveria contar a meu pai. Assim fiz, com todos os cuidados, sem deixar de mencionar ter sido minha nota a melhor da classe. Não tive direito a circunstâncias atenuantes. Primeiro, ele quis ver a prova. Simplesmente, não tinha respondido a uma pergunta, que valia três pontos. Hoje, decorridos tantos anos, ainda me lembro do malsinado problema. Algumas equações e lugares geométricos definiam um paralelepípedo cortado por dois planos que nele penetravam como uma cunha. O enunciado pedia determinar o volume do sólido menor. Bastaria ter visualizado a continuação dos cortes, que criavam uma espécie de telhado de casinha. Com o emaranhado dos traços, isso não era tão simples.

— Pai, esse problema caiu no vestibular do ITA.

— E daí? A prova se dirigia a seres normais, sendo que você ainda teve o benefício de não sentir a tensão do vestibular. Veja como é fácil. — Fácil não era, pois depois de mais de uma hora nossos esforços somados nos levaram a consultar um livrão de problemas dos Frères Jésuites e desistir. Papai decidiu: “o menino precisa de umas aulas de reforço”. Restava saber de onde viria esse auxílio neuronal. “Filho, se ele ainda vive, irá conhecer um sujeito fabuloso. É um lituano... `Palauskas´ qualquer coisa assim. Foi meu professor de Descritiva. Era simplesmente impressionante”. Uma rápida procura na então confiável lista telefônica e, lá estava eu...

— Então, menino? Vamos começar pelo começo. Sente-se ali e comece contando seu nome. Dirigiu-se para o fundo da sala e puxou uma cortina de plástico, segura por argolas de madeira, de maneira a esconder o que devia ser o quarto. Com gestos rápidos retirou uma porção de livros e papéis de cima de uma mesa de madeira trabalhada, com tampo de mogno, como eu ainda não tinha visto. Sentei numa cadeira forrada de veludo, que um dia fora azul, azul que, com o passar dos anos, tinha virado cinza-escuro, enquanto ele puxava um verdadeiro trono, uma cadeira de espaldar alto com descanso para os braços. Tive tempo de examinar a formidável desordem que reinava no quarto. Nas paredes, alguns quadros que não me causaram impressão nenhuma, num canto, uma cristaleira sobre a qual, entre livros e algumas peças de prata, tronava um jogo de chá bastante heterogêneo, composto por sobreviventes de diversos conjuntos. Enquanto procurava o que dizer, ouvi um rosnado partindo de algum canto da sala.

— Não tenha medo. É o Gauss. Aqui, Gauss! Além deste professor, ainda terá o auxílio do “príncipe dos matemáticos”. – Gauss era um enorme mestiço de pelagem preta reluzente. Interpretando algo equivocadamente a ordem, veio primeiro na minha direção e colocou a cabeçorra no meu colo. Gelei. Fiz menção de recuar, mas desisti, ao ver que Gauss estava abanando o rabo sem que nada fizesse prever a existência de qualquer intenção assassina.

— Tenho um pouco de medo.

— Bobagem. É só tamanho. Ele é tudo que me resta. Vamos ao seu problema. Seu pai me contou em detalhes o acontecido. Por fone, já puxei a orelha dele. Onde já se viu um bom aluno meu não matar um probleminha banal? — Deu uma breve risada, interrompida por um acesso de tosse seca — Ia dizer alguma coisa mais? — perguntou com os olhos marejados por causa do esforço.

— O professor mesmo disse que era um problema e tanto. A semana que vem ele resolverá em classe. Ninguém matou.

— Se ninguém matou, vamos nos resignar? Belo argumento de perdedor. O único problema importante é o da nossa existência, que se guia pelos axiomas mais disparatados, isso sim. Como afirmar que uma prova não é banal? Sejamos sérios, ora — não parava de sorrir; aquele ar triste era o que se poderia esperar de um “professor de melancolia” — Vamos ao enunciado do enigma. Sabe como deve proceder para solucionar um problema?

— ...

— Deve ler o enunciado.

— Sim, é claro.

— Muito bem. E depois?

— Tentar resolver, não?

— Ainda não, deve reler o enunciado. Diferentemente do que acontece na vida, do nosso dia-a-dia repleto de informações irrelevantes, prontas para mascarar as verdadeiras agruras, nos bancos escolares, os enunciados são enxutos. Não há informações desnecessárias. Então, depois de ler uma segunda vez, o que fará?

— Vou resolver..

— Ainda não. Vai parar, vai pensar, talvez até, relerá mais uma vez. E aí, sim. Seu pai, fominha, como quando era meu aluno, não agüentou, ligou novamente e me passou o enunciado pelo telefone antes de você vir. Agora ele sabe a resposta, mas saiba que o fiz ler duas vezes o enunciado e que ele encontrou, sozinho, a solução. Vamos? — Poucos minutos depois, a única coisa que não entendia era como tinha sido possível não encontrar a solução que saltava aos olhos. O resto da aula foi um tiroteio cerrado, do qual me saí bem. Gauss ficou dormindo a meus pés. Só levantava a cabeça, quando o dono começava a tossir, tornando a abaixá-la, passado acesso.

— Professor, o que acha?

— Não acho nada. Meu papel não é achar. Faz muito tempo que não procuro e não acho mais nada. Vamos ver como você irá enfrentar o livro de Petersen. — Já conhecia o livro, terror das aulas de geometria do “Tirano”, apelido ao qual o professor de matemática fazia jus com sobra. Avançamos pelo livro até que o professor deu a aula por terminada. Ao voltar, papai me acolheu sorrindo.

— Ele é fantástico, não achou?

— É sim — faltou pouco para dizer-lhe que não achava nada, que estava simplesmente entusiasmado — Com ele, tudo fica ridículo mesmo. Fica parecendo tão simples.

— Era um professor notável. Tem livros publicados. Ele lhe mostrou?

— Não.

— É bem o jeito dele. Típico. Não mudou nada. Gostaria muito de revê-lo.

— Por que diz isso?

— Nunca vi uma pessoa mais desprendida de valores materiais. Fuma como chaminé e o resto que se dane. Dizem que bebia, mas isso não sei. Tenho medo de revê-lo, prefiro guardar a imagem que ficou na minha mente.

— Ele é bem velho. Não fuma mais. Talvez tenha razão pai — opinei na qualidade de psicólogo improvisado.

— Largou o cigarro? Também preciso parar com isso... Tenho de criar vergonha na cara.

As aulas continuaram, até que numa tarde, tive um choque ao entrar. Ele havia bebido. O cabelo em desalinho, o olhar turvo, o sorriso apagado.

— Quer que venha outro dia, professor?

— Não. Talvez não haja outro dia. Vamos conversar um pouco. Não estou matando a aula. Nada lhe cobrarei. Poderia me fazer um grande favor?

— Sim, claro.

— Não tenho força nas pernas e alguém tem de passear com o pobre Gauss. Depois quero que pegue o livro de Petersen. É meu presente para você. Está cheio de comentários, anotações e de soluções alternativas. Talvez alguns rabiscos meus lhe serão úteis. Acho que você será meu último aluno. Não faça essa cara, nada vai me acontecer. Apenas penso em parar de dar aulas, para poder tossir mais à vontade.

— Professor, não acho engraçado.

— Por acaso a vida é engraçada? Agora, leve o Gauss. A faxineira não veio, e o “príncipe dos matemáticos” está sem sair faz quase vinte e quatro horas. Tenha pena dele. Ah sim, não use o elevador, tem gente histérica no pedaço. Mal fiz menção de apanhar a guia, e Gauss já estava de pé, abandonando sua pose de filósofo em busca da verdade suprema. E quem disse que ele queria sair? Naquele momento tive a demonstração do que significa obediência. Bastou um estalar de dedos do dono, para que o cachorro me seguisse confiante.

O passeio durou uma boa meia hora, talvez um pouco mais, com direito a pausas junto a determinados postes. Parecia inteirar-se das mensagens deixadas pelos seus semelhantes e a todas respondia. Concluída a operação “alívio” Gauss começou a puxar em direção à casa.

Lá chegando, fiquei surpreso com a total mudança ocorrida nesse escasso intervalo de tempo. O mestre parecia totalmente sóbrio, cabelo arrumado, barba feita, recendendo a loção pós-barba; era outra pessoa.

— Vamos ter aula, ou vamos papear, meu jovem?

— Como quiser.

— Odeio aborrecer os outros com minhas lorotas, mas hoje creio que deva falar com alguém. Quase não saio de casa. Ao menos faz dois anos que não saio, a não ser para fazer companhia ao Gauss.

— Mas deveria.

— Pode ser. Pode ser. Não se surpreenda com o que lhe direi. Acho que nada mais tenho que fazer por aqui. Nunca fui rico, sempre gastei até o último tostão. Mas tinha uma razão de ser. Não, não fui irresponsável para colocar no mundo outros infelizes, não. Havia alguém que dava um sentido à minha vida. — Apontou para um retrato em cima da cristaleira. Nunca vira esse retrato antes. — Sei que nunca viu esse retrato, pois ele sempre esteve no meu quarto, mas agora ela está me chamando e pediu para me ver saindo de casa. — Fiz menção de levantar, mas com um tom de voz, que, por mais que me esforçasse, não saberia descrever, ele me pediu. — “Deixe-a em paz. À medida que envelhecemos, precisamos cada vez mais nos sentir em segurança ao abrigo de perigos. Quando ela se foi, já faz dois anos hoje, tudo deixou de fazer sentido. Percebi que não há segurança alguma, que as certezas mais se assemelham a dúvidas e, que o ato de fechar os olhos não passa de um ensaio geral. Estou doente e não faço o menor esforço para procurar auxílio médico. Por ela tinha parado de fumar, mas hoje vou fumar um bom charuto, lembrança de outros tempos. Levava cada bronca por causa dos charutos, menino, nem consegue imaginar. E agora, nada! A equação da minha vida já não admite mais uma raiz real. — Acendeu o charuto —. Essa tosse, que você ouviu, é uma tosse cardíaca. Devo estar com um belo entupimento das coronárias. Elas reclamam sempre que faço algum esforço. Gauss sabe disso e nunca me puxa na rua; seria incapaz de acompanhá-lo. É claro, que uso o elevador e ele vai pela escada, chega antes e me espera sentado. Ele é bem esperto... Quando seu pai me ligou, eu já estava enclausurado aqui, sem nada fazer e foi uma espécie de desafio dar o empurrão do qual você necessitava. Sinceramente — olhou novamente em direção ao retrato, soltando uma baforada avantajada — depois que ela se foi, quando faço a barba e passo a mão no rosto, tenho a impressão de tocar o crânio do futuro defunto. Eis a razão pela qual me viu tantas vezes com a barba por fazer. Alguém disse certa feita ‘Já que sabemos de maneira absoluta que tudo é irreal, não há motivo para darmo-nos ao trabalho de demonstrá-lo’. Vemos a passagem das horas; isso vale mais do que tentar preenchê-las. Um dia, mesmo que não me dê razão, poderá, ao menos, avaliar melhor essas verdades, que apunhalam toda vontade de se apegar a algo, que para mim já não faz mais sentido. Não há expressão matemática capaz de retratar meu desespero. Durante dois anos — já disse que hoje esses dois anos se completam, se insisto na repetição, não o faço por demência senil, creia; é apenas uma tentativa de persuadir-me de que... — tentei descobrir uma razão de viver. Não encontrei. Assim como não pude explicar o porquê do meu nascimento, não encontro mais motivo algum para prolongar minha existência. Não amaldiçoei o fato de ter nascido; até dois anos atrás vivi na ilusão de ter encontrado a felicidade. Bastou que algumas células do corpo dela passassem a crescer de modo desordenado, para que pudesse entender o quanto tudo é efêmero. O que sei agora, passados setenta anos de vida, já intuía aos vinte. Passei cinquenta anos, mergulhado em divagações estéreis, atrelado a uma tarefa supérflua de verificação. Sempre que me detive diante da presença hipnótica do vazio, a presença da minha mulher fazia-me retomar o gosto pela vida. Não foi só ela. O que me animou, também, foi poder rebocar meus alunos a caminho de uma sabedoria restrita. É isso. Você, menino, terá sucesso no futuro. Procure afastar para bem longe essa poção amarga que lhe ministrei. A vida é o lugar geométrico de alegrias situadas a uma distância tal que, escolhida uma grandeza qualquer, ela será sempre inferior àquela que o separa da verdadeira felicidade. A recíproca do teorema existe, mas sua demonstração é impossível. Se você estiver muito longe da felicidade, está vivo. E o corolário que nos mantém firmes é que há momentos em que pensamos ser felizes e vivos simultaneamente. Aproveite-os. No mais, pensar é sofrer. Console-se. Há dois anos, achava tudo que acabei de lhe dizer rematada estupidez. Essas reflexões são bem recentes. Meu olhar retrospectivo é uma impostura intelectual. Não se fie no que minhas palavras afirmam, procure o que elas ocultam. Antes de chegar ao meu desânimo, lute bastante. E para começar, resolva os problemas do Petersen. Talvez nos vejamos na quarta-feira que vem. Sinceramente, duvido.”

Na tal quarta-feira, encontrei a porta aberta. Entrei. Ninguém. Ouvi apenas o ganido de Gauss. Afastei a cortina de plástico, e lá estava o professor, deitado na cama, pálido, o peito agitado por uma respiração irregular, uma das mãos apoiada na cabeça do cachorro. Apavorado, saí gritando por socorro. Liguei para casa, para saber como pedir uma ambulância. Ele acenou apara mim. Tentava dizer algo. Aproximei-me dele e ouvi: Gauss. Leve Gauss. O cachorro não queria se mexer. O professor estalou os dedos. Depois de ver o cachorro pronto para me acompanhar, olhou para mim, com olhar turvo e... acho que estalou os dedos mais uma vez... para mim...

Gauss ficou comigo mais alguns anos. Até hoje conservo o livro de Petersen.

(*) Do livro “O desmonte de Vênus”, Ed. Totalidade.


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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