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COLUNISTA
Alexandru Solomon
13/08/2014 - 15h01
Relógio parado
 
 

Momento mágico. A expressão surrada descrevia com perfeição o instante de enlevo. Embalado pela barulheira ensurdecedora reinante na boate Hullabaloo, escravo dos decibéis à solta, no ritmo do Black is Black, pobre tautologia e sucesso barulhento do momento, estava pulando feito mico de circo em frente à Camila. A luz negra tornava infernalmente atraente a jovem.

Com 18 anos incompletos, fora um tour de force entrar na boate. Uma generosa gorjeta, discretamente colocada na mão do Cérbero de plantão, uma carteirinha do grêmio da faculdade, surrupiada do irmão, bem como o penteado alto, ressaltado pela maquiagem pesada de Camila, tinham sido o passaporte para a boate do momento de São Paulo. A gritaria alcançou níveis inimagináveis, quando os alto-falantes inundaram a pista diminuta com o sucesso dos Four tops: Reach out.

A luz estroboscópica passou a piscar, criando a ilusão de movimentos entrecortados...to give you all the love you need... Para dar-lhe todo o amor de que precisa... urrava o conjunto... Tudo era magia naquela noite de 1967.

Um mês antes, conseguira superar a timidez e balbuciara um inaudível ‘te amo’, enquanto passeavam, suprema ousadia, de mãos dadas, morrendo de medo de encontrar algum conhecido.Teve como resposta um beliscão e uma risada da Camila. Existe melhor confirmação? Isso os tornou namorados firmes. Não era pouca coisa. Ele até fora apresentado aos pais de Camila, um casal simpático e abastado. Acompanhar a namorada depois das aulas, os levou à constatação de que, se o caminho mais curto entre a escola e o lar era uma linha reta, de longe a melhor alternativa era seguir um trajeto tortuoso. Falavam de tudo e de nada. Não raro, os silêncios eram mais eloqüentes que a troca de banalidades. Sérgio a olhava de soslaio e se encantava com a visão do rosto regular de pele acetinada no qual brilhavam imensos olhos verdes. A imagem o perseguia durante as aulas, de noite logo antes de adormecer e, pasmem, até quando saía com os amigos, para tomar uma Coca Cola no Chic Chá, um bar diminuto, vizinho da escola, e que vivia sempre cheio. Por mais que quisessem, não conseguiam se isolar dos amigos, afinal a turma deles com poucas baixas ou novas adesões fora a mesma nos últimos dois anos. A boa companhia muitas vezes vira estorvo quando a vontade é beijar. O primeiro beijo ocorreu no elevador do prédio dela. Foi o primeiro de muitos.

Naquele sábado, ela contara uma mentirinha em casa. Iriam com o grupo de sempre ao Urso Branco e ela estaria de volta ‘sem falta’ pouco depois da meia-noite. O álibi foi montado, com a total e unânime cumplicidade do resto da turma, que iria jurar, se necessário fosse, que estiveram em companhia deles. Era quase verdade. O detalhe omitido era que Sérgio e Camila iriam se deter no início da Avenida Santo Amaro ao invés de cumprir o roteiro prometido. Alguns quarteirões separariam o fato da versão.

 Lá estava o casalzinho na boate, sentados, durante um intervalo entre músicas, tomando, ele um uísque intragável, bebida com a qual não estava acostumado, ela um Alexander, a consumação mínima, suficiente para ‘detonar’ a mesada de Sérgio. De mãos dadas, era como se o mundo exterior deixasse de existir. Com a cabeça no ombro dele, ela murmurou:

– Estou tão feliz. Gostaria tanto de poder... Ela se deteve.

– Diga.

– Nada, bobinho. Um beijo completou-lhe o pensamento. Ele a abraçou e nada na galáxia passou a importar. O abraço se tornou de parte a parte mais voraz. Sabiam muito bem o que isso significava. Com um suspiro, ela se desvencilhou.

– Está ficando tarde.

– Só mais um pouco.

– Já passa de meia-noite.

– Eu sei. Quero tanto...Não ousou dizer o que tanto desejava. Nem era preciso. Tornou a beijá-la. A música recomeçou. Era uma seleção um pouco mais lenta, permitindo que a pista fosse invadida por pares enlaçados. Sitting in the dark of the bay...Pois é, e que tudo mais fosse para o inferno, pensava Sérgio. Por nada no mundo teria trocado a sensação do rosto dela colado no seu. Quando ela lhe beijou o pescoço, viu mil luzes se acenderem naquela escuridão. Passos miúdos sem a pretensão de sair do lugar. Com muita indulgência aquilo poderia ter sido chamado de dançar. Camila foi a primeira a romper o sortilégio.

– Não.

Era um pobre não, mas estava decretada a volta à superfície, depois do mergulho. Sérgio ficou surpreso com a tonalidade da própria voz, quando implorou.

– Agora, deixa...

– Temos de ir. Prometemos.

Foram caminhando abraçados como bêbados. Ébrios de paixão. Pasmos com a própria ousadia. Uma vez no Gordini, cedido pelo irmão de Sérgio, as últimas resistências dela pareciam fadadas ao desaparecimento. Não bateram o carro por pura casualidade. Finalmente, estacionaram. O último beijo. Carícias, desajeitadas talvez, mas arrebatadoras, enquanto, submissos, cediam à fantasia dos seus corpos.

-Não, Sérgio. Estou com medo. Aqui não...é muito tarde. Mamãe pode estar na janela; daqui não posso ver...

– Nem ela pode ver...

– Mas vai ver o carro.

– Não sabe de quem é...

– Mas vai me ver saindo dele...

– Jura, então, que no próximo sábado...

– Sim.

– Diga: eu juro.

– Tá bem.

– Diga.

– Eu juro.

– Promete?

– O que você quiser.

– Sábado que vem?

– Com certeza.

Não houve ‘sábado que vem’. Ao menos, não como eles imaginaram. O pai de Camila teve de deixar o Brasil às pressas. Na quinta-feira Camila não apareceu no colégio. Soube-se depois que o pai de Camila pagara com um precipitado exílio voluntário o preço dos chamados ‘anos de chumbo’. Circularam inúmeras versões. Fato é, que nunca se soube a verdade. Pouco importava. Estava decretado o fim do momento mágico. Durante alguns meses, chegaram cartas de Camila. Estavam em Lisboa. Breve, voltariam ao Brasil. Ela o amava. O amaria para sempre. Queria notícias. O endereço da remetente era Rua da Padaria, em Lisboa. Para lá voaram epístolas, cujo conteúdo teria sido melhor aproveitado nos trabalhos escolares sobre diversas correntes literárias. Houve uma passagem pelo realismo, substituído gradualmente por um romantismo cada vez mais desprovido de foco. Por fim, as cartas escassearam, até que as últimas missivas de Sérgio ficaram sem resposta. Um ‘para sempre’ que se eternizasse por alguns meses era mais do que razoável, resignou-se Sérgio. Mas a lembrança continuou a fustigá-lo. A fantasia alojou-se-lhe na mente, para nunca mais abandoná-lo.

***

De pé, no metrô, Sérgio fitava com ansiedade o desfile das estações: Trocadéro, La Muette, Pompe, Ranelagh... Durante sua estada em Paris, para participar de um congresso patrocinado pela Bouyghes, empresa relacionada com a dos seus patrões, o sobrenome de Camila fora pronunciado por um dos anfitriões do evento. Coincidência ou não, a mente de Sérgio deu um pulo de vinte anos para trás. A lembrança insepulta lacerou-lhe a alma. Não poderia ser obra do acaso. Quantas famílias Antanças haveria em Paris? Abandonou a palestra e, com um terminal Minitel, localizou o único possuidor do sobrenome, em Marly-le-Roy. Telefonou e conversou com a mãe de Camila. Ela mal se lembrava dele, mas não criou dificuldades em lhe dar o telefone da filha. Camila estava bem, era casada, arquiteta, feliz. Com toda certeza ficaria encantada em conversar com um amigo brasileiro. Nunca mais haviam voltado ao Brasil. Talvez um dia. Sérgio se despediu e enquanto teclava o número, a cada toque sentia um calafrio. Atenderam.

– Alo, oui.

Era a mesma voz.

– Camila, sou eu Sérgio.

– Sérgio? Que Sérgio? Sérgio! Ça alors! Que surpresa! Onde está você?

– Estou em Paris, por alguns dias. Gostaria muito de ver você.

– Claro, podemos almoçar juntos amanhã?

– E se for agora, já?

Ela riu.

– Bem, então venha em casa. Moro na Rue du Ranelagh – e deu o número. Fica pertinho da estação de metrô. Achará com facilidade. Conte-me, como está você?

– Estarei aí em meia hora, no máximo. Aguarde.

– É claro que aguardarei. Preste atenção. Há um código a ser teclado na entrada: 536. É no quarto andar. Bisous.

Que droga, ela mandava beijos em francês, pensou divertido. Seria essa a única mudança? Melhor pensar em outra coisa, decidiu. A caminho do metrô, entrou numa doceira e de lá saiu com um pacote de chocolates sortidos. Estava realmente nervoso, tanto que foi um drama resolver que tipo de bombons iria levar. Uma vendedora objetiva e mal-humorada se encarregou de encurtar o processo de escolha. Durante o trajeto ficou observando os passageiros do metrô. Sentados, liam indiferentes, enquanto a mente dele dava pulos. A esperança louca de reviver a continuação de um instante sempre presente na memória, não lhe dava paz.

Empacou em frente à entrada do edifício. Respirou fundo e, instantes depois, cumprido o ritual, acionava o botão da campainha do apartamento, como nos bons velhos tempo: três toques, sendo o do meio mais longo. Será que ela lembraria? A maçaneta girou e lá estavam eles frente a frente. A mesma silhueta esguia, o sorriso, o incomparável olhar cor de esmeralda. Ela pareceu-lhe imune à ação do tempo. Apenas o tailleur nada tinha a ver com os vestidos de um outro tempo, com os quais ela o visitara durante tantas noites de insônia.

– Querido, que surpresa maravilhosa! Entre. Mi casa es su casa. A mesma fórmula. Nada mudara, felizmente. Trocaram dois beijinhos no rosto. Infelizmente, algo mudara. Entraram na sala, cuja mobília moderna o impressionou. Pernas trêmulas, desabou no sofá que ela lhe indicou, enquanto Camila ia e vinha trazendo guloseimas. Sentada a seu lado, desatou a falar. Em menos de dez minutos, Sérgio teve o retrato completo de duas décadas. A saída clandestina, passando pelo Uruguai, o exílio em Lisboa, o drama da imigração, a falência e a depressão do pai, a nova vida em Paris, a faculdade, casamento, o filho que estudava num colégio próximo o Claude Bernard. Sim, ele deveria chegar dentro de no máximo duas horas. Em momento algum Camila fez referência a Sérgio. Ela continuou falando, mas ele não a ouvia mais. Estava perdido na contemplação de uma ilusão que se desmanchava, ali, à sua frente.

Arriscou uma pergunta, mesmo sabendo qual seria a resposta:

– Camila, você pensou em mim, alguma vez?

– Ah, querido, muitas vezes. Éramos tão crianças. Conte um pouco de você. Fiquei falando sem cessar. Diga-me: O que faz. É feliz? Mostre-me fotos de sua família. Não vai me dizer que não trouxe. Nunca lhe perdoaria isso.

Tirou a carteira do bolso e por momentos ficaram vendo as fotos. Meus filhos, minha mulher, o cachorro, minha mulher e eu...Camila olhava: ‘Que belo cão! Sabe, tivemos um Collie...’

O que mais poderia esperar? Para ele, num recanto secreto da alma, construíra um paraíso em miniatura. Esse permaneceria. Nada e ninguém abalroaria essas muralhas. Infelizmente, estaria condenado a visitar, sempre só, aquele recanto de uma felicidade, cujo segredo a mais ninguém pertenceria. Iludira-se por instantes, ao imaginar que o tempo cometeria a loucura cúmplice de se deter e que lhe seria dado conseguir obstar a marcha inexorável dos ponteiros do relógio. A máquina do tempo havia triturado de maneira desigual. Apenas ele poderia sonhar doravante com o ‘sábado que vem’. Breve iriam se despedir com um insosso ‘bisous’.

– Agora, mostre-me as fotos de vocês.

(*) Do livro “Sessão da Tarde”, Ed. Edicon.


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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