Eu costumo me lembrar com freqüência do medo de cair preto na porta da igreja. Foi antes de fazer a primeira comunhão. O padre do catecismo dizia que se a hóstia encostasse num dente, ainda que de leve, poderia se dar a tragédia. Hoje é fácil rir, mas para a cabeça de um pobre garoto de seis anos era um horror. Pratiquei muito em simuladores de comunhão. Minha avó me ajudava fazendo hóstias de massa de pão. No dia "D" eu estava preparado. Mas qual não foi a minha surpresa ao ver ao meu lado o Sammy, mastigando a hóstia como se fosse um bazooka, grande novidade da época. Um chiclete que fazia bolas e tinha um decalque para colocar no braço. Ou em outro lugar, conforme o gosto do freguês. Saí da igreja com a pulga atrás da orelha. Fiquei procurando o cadáver preto, mas o que vi foi o Sammy, que era branco e vermelho, entrando no Buick do pai. Dias depois fui até a casa dele. Seu Juvenal, o pai, era muito legal. Tinha um jeito estranho de falar, meu avô dizia que ele era da Bessarábia. Depois eu soube que o nome dele não era Juvenal. Era Jacob Blumenthal. Ele adotou Juvenal Saraiva por razões comerciais. Acontece que eu fui na casa do Sammy na sexta-feira santa, dia em que na minha casa tudo era proibido, inclusive dar risada. Nada podia, até respirar fundo era pecado. Espirrar então! O que dizer de soltar um pum! Meu pai tomava vinho na hora do almoço e minha avó ficava possessa. Ele dizia que se o padre podia ele também podia e o caldo entornava. Quando cheguei na casa do Sammy estavam comendo carne assada. Quase morri de medo, o cara além de mastigar hóstias comia carne na sexta-feira santa. Semanas depois dei uma canelada num português, jogando futebol. Ele me xingou de excomungado. Sem saber o que era contei em casa e a família se encheu de indignação. Eu soube então que os excomungados estavam previamente condenados ao inferno. Devia ser ruim esse tal de inferno, o pessoal tinha o maior medo de ir para lá. Fiquei acabrunhado com a sentença terrível. Restou o consolo de ver o Portuga levar a maior sova da mãe. Por via das dúvidas fui levado numa benzedeira para tirar o quebranto. Passados alguns dias tornei a ir à casa do Sammy para estudar. Nesse dia seu Juvenal me mostrou um número que tinha tatuado no braço. Disse para eu não ter medo de ir para o inferno. Ele contou que esteve lá, que era ruim, mas tinha acabado. Disse também que se eu quisesse me levaria numa igreja onde era permitido comer carne na sexta-feira santa. Eu agradeci, naquela época já estava começando a desconfiar que igreja não era a minha praia. A propósito, o Portuga fundou uma seita e ficou milionário. Mora em Miami e vive à tripa forra com o dízimo dos fiéis. Tem quatro mulheres! O Sammy estudou Medicina e Filosofia. Dá plantão num monte de hospitais e é meu amigo até hoje. Sempre que é possível tomamos umas cervejas. Virou ateu convicto.
Nota do Editor: Sidney Borges é jornalista e trabalhou na Rede Globo, Rede Record, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo (Suplemento Marinha Mercante) Revista Voar, Revista Ícaro etc. Atualmente colabora com: O Guaruçá, Correio do Litoral, Observatório da Imprensa e Caros Amigos (sites); Lojas Murray, Sidney Borges e Ubatuba Víbora (blogs).
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