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COLUNISTA
Alexandru Solomon
11/05/2014 - 08h02
Lucy revê suas anotações
 
 
Conversa (des)afinada

Após uma breve interrupção, Lucy continuou a colocar em ordem as suas fichas. Percebeu que na desordem organizada, própria de sua natureza irrequieta, havia uma anotação referente ao reinado do Bolivaristão, reino situado além da fronteira setentrional do Absurdistão. Caracas! Exclamou Lucy, evitando a armadilha do palavrão que por pouco não deixara de proferir. Leu rapidamente.

Se no Bolivaristão os súditos de Don Adulto mal têm o que comer, que diferença faz ter ou não ter papel higiênico? Lucy guardou a anotação e voltou ao seu relatório Absurdistanês. Dois tópicos a aguardavam.
Mediocridade administrativa. Pouco afeita às sutilezas do idioma do qual a duras penas – penas de pinguim congelado – conseguia se assenhorear, Lucy hesitou um pouco entre mediocridade, incompetência e inoperância, mas optou pelo primeiro termo. Entre outros elementos que justificavam a observação, Lucy ateve-se a alguns, sem pretender esgotar a lista.
Estranhou a decadência da Petroabsurdão. A outrora flamejante empresa amargava uma constrangedora classificação no rol das empresas petroleiras, desmentindo o bordão segundo o qual “o melhor negócio do mundo é uma empresa de petróleo bem administrada, sendo o segundo melhor uma empresa mal administrada.” Havia um debate acirrado na imprensa absurdistanesa acerca da compra de uma refinaria, que segundo alguns fora um mau negócio, segundo outros um bom negócio e segundo outros uma operação que só se realizou devido à omissão de algumas cláusulas contratuais não mencionadas num resumo executivo. Curiosa pela própria natureza, Lucy procurou saber um pouco mais. Uma das famosas cláusulas, cujo conhecimento prévio teria brecado a malsinada compra, era uma tal de put. Lucy procurou certificar-se de que lera corretamente. Era isso mesmo. A tal de put havia parido a confusão! Segundo essa cláusula que nada de extraordinário tinha, em caso de desacordo entre os sócios desse maravilhoso empreendimento, um deles poderia vender ao outro a sua parte. Lucy resumiu, com seu notável poder de síntese. “Eu te compro ou tu me compras”. Por que diabo a Petroabsurdão comprou? Por que não vendeu, já que não quis comprar? Por que não disse por meio dos seus portapensamentos: “Por esse preço que tu me pedes eu ta vendo”. Sem resposta, pensou ter esgotado o assunto Petroabsurdão. Mas ele voltou com outra roupagem.
Lucy leu algo sobre a inflação e a meta. Ah, essa meta! Como terá sido estabelecida? Logo imaginou um arqueiro do rei, ou teria sido o rei, soltando uma flecha majestática em direção a uma tábua com números aleatoriamente dispostos. A seta teria se fincado no número 4,5% e mais rapidamente do que pudesse imaginar, um bando de cortesãos teria traçado círculos em volta do alvo, determinando margens de tolerância. Assim é que, por uma flexibilização do conceito, em Absurdistão não se falou mais na “meta” e sim na “mancha” formada pelos círculos concêntricos em volta do “tiro real”. Por razões mil, a inflação ameaçou sair desse círculo nada caucasiano. Não seja por isso. Confundindo alta de preços com nível de preços partiu-se para o controle de preços. E eis novamente a Petroabsurdão entrando em cena. Os sábios governantes não ignoravam a influência dos preços dos combustíveis e para que a alta destes não desencadeasse uma cascata de outros aumentos, afinal, em outros tempos formavam-se filas enormes de absurdistaneses em frente aos postos de gasolina às vésperas de aumentos anunciados, resolveram os preclaros congelar os preços desses combustíveis tão desprovidos de patriotismo. Por uma fatalidade, o Absurdistão apesar de autossuficiente em petróleo, não o era tanto assim, tendo que importar pela Petroabsurdão por um preço alto – malditos estrangeiros! – e vender por um preço inferior ao de compra os preciosos combustíveis. Segundo intrigas oposicionistas esse era um mau negócio. Como isso não era suficiente, a sacerdotisa-mor de Absurdistão, com o fito de ganhar o bicampeonato de Miss Simpatia, determinou que as tarifas de energia elétrica baixassem. E como as distribuidoras de energia – fustigadas, como de resto o reino inteiro, por uma ausência de chuvas, que comprometia o nível das represas das centrais elétricas – tiveram que comprar energia mais cara, iniciaram uma choradeira comparável ao lamento do terceiro ato de Nabuco. Para tapar o buraco, recorreu-se a grana sonante e, para evitar a pecha de falta de criatividade, eis que um gigante, a CCEE, reputada pela exuberância de seus ativos, foi induzida a tomar um empréstimo – coisa pouca – para repassar às distribuidoras que já estavam matando cachorros a gritos – suscitando, com esse morticínio, enérgicos protestos da Sociedade Protetora dos Animais. Depois, a gente vê. O diabo é que o depois vem logo depois do agora. Assim, a inflação convergiu de forma não linear para o ponto representado pelo centro da meta, ou pelo menos, não saiu ainda da mancha. Uma cefaleia aguda fez Lucy deixar de lado a ficha relativa ao “pibinho” e pulou para:
Péter plus haut que son cul. O professor de Francês de Lucy garantira que a vulgaridade do termo era apenas aparente, tratando-se de uma antiga expressão, datando de 1640, cujo significado tomado ao pé da letra é: soltar flatos por algum lugar situado acima do orifício designado para esse fim, mas que na verdade também quer dizer pensar ser melhor do que se é na realidade, mesmo estando ‘numa cidade sitiada’. É um pecado que assola os dirigentes do Absurdistão, quando se referem ao reino ou, modestamente, a si próprios. Assim é que, generosamente, foram perdoar dívidas de reinos longínquos, se bem que eram dívidas representadas por papéis cuja melhor utilidade teria sido suprir a falta que vitimava o Bolivaristão.
A diplomacia do Absurdistão poderia se resumir em duas tendências maiores: Tudo para chatear um tio Samuel e ausência total de coluna vertebral quando se lidava com gigantes do porte de alguns vizinhos encrenqueiros. Um apêndice ao princípio acima era ostentar orgulhosamente a carteirinha de sócio atleta de um tal BRICabraque. A ambição em nome da qual o Absurdistão atuava era conseguir uma cadeira, poltrona, sofá ou algo assim, num Conselho de Segurança onde poderia fazer ouvir sua voz, já que a humanidade em geral parecia padecer de alguma surdez ante brados retumbantes emitidos de outros lugares.
Os vizinhos encrenqueiros tudo fizeram para irritar o Absurdistão. Mas com a complacência plácida de Gulliver em Lilipute, o Absurdistão afagava o senhor dos gases, pagando o que ele pretendesse, reverenciava as traquinagens da república do Perônio – ou da fíbula, como queiram – e aguentava sorridente pequenas insolências vindas de irmãos menores. Para alguns a melhor solução nesse caso seria aquela encontrada por Gulliver para apagar um incêndio em Lilipute, porém essa medida algo drástica caracterizaria uma recuperação da coluna vertebral, projeto de difícil consecução. Consultado a respeito o doutor Sérgio Z, especialista em problemas de coluna, confirmou a assertiva.
Para mostrar sua cara ao mundo, e por mundo entenda-se o planeta Terra, o sistema solar e as galáxias próximas, o Absurdistão assumiu a organização de dois magnos eventos esportivos: a Copa das Copas e a Olim-piada. Para a Copa das Copas, evento-mor do ludopédio mundial, foi necessário construir arenas perto das quais o Coliseu romano não passa de ridículo pigmeu. O projeto ambicioso sofreu por causa de dois fatores. O primeiro era a obstinação doentia de uma federação internacional, cuja insistência em manter a data programada, insinuando ser necessário ministrar ao Absurdistão pontapés no local onde as costas mudam de razão social – OOOOOOHHHH – parece totalmente descabida. Adiar o evento não teria nada demais. Se a transposição de um grande rio podia ter seu término adiado e se o projeto de um trem-obus podia ter até seu início procrastinado, por que cargas de H20 essa teimosia em manter uma data muito menos importante, causando um estresse monumental à operosa comunidade absurdistanesa? O segundo óbice, infinitamente menos importante era encontrar um zoológico disposto a abrigar uma série de elefantes de cor branca, passado o grande evento. Quanto a Olim-piada, o Absurdistão está algo enrolado, sem dúvida por causa dos cinco anéis que o obrigam a andar em círculos nada viciosos.
Cansada pelo esforço, Lucy decidiu adiar a digitalização de suas memórias de viagem. Quem poderia censurá-la por isso? Ao perceber que involuntariamente cometera um trocadilho, Lucy apagou a luz e foi dormir.


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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