Conversa (des)afinada
Fazia parte do treinamento de Lucy, nessa sua ambientação após seu prodigioso salto no tempo uma série de visitas técnicas. Coroando essas atividades, o CIL (Centro de Integração de Lucy – observação para os leitores desmemoriados) conseguiu uma suplementação de verbas e programou um passeio no Absurdistão. Para os menos versados nas contínuas modificações geopolíticas que agitam nosso miserável grão de areia perdido no Universo – fonte inesgotável de perguntas capciosas em exames vestibulares, as agitações, não o Universo – basta saber que se trata de uma república situada em algum lugar ao sul do equador, num continente conhecido como Vespúcia do Sul. Aos mais interessados, recomenda-se consultar uma criança-prodígio, dessas que passam horas intermináveis em frente a uma telinha de computador ou de um fone que nada mais tem de Smart para ela. A viagem transcorreu sem incidentes, apesar de, vez por outra, ter sido necessário encontrar um refúgio, ainda que precário, para evitar encontros desagradáveis com manifestantes pacíficos, porém de insuspeita agressividade. À pergunta óbvia: “Qual o propósito que move esses estranhos sodalícios?” a resposta recolhida num compêndio de autoria de um pensador local não deixava margem à menor dúvida, pela precisão da análise quantitativa: “São movimentos 80% políticos e 20% lúdicos”. Foi nessa oportunidade que Lucy descobriu ser 80% prudente e 20% curiosa, motivo pelo qual, no seu caderninho de anotações, anotou – caderno de anotações serve para anotar, se bem que poderia ter consignado, registrado ou até mesmo assinalado – “Ainda bem que não sou vitrine de loja”. Já de volta aos seus confortáveis aposentos, Lucy preparou o relatório da viagem, a fim de submetê-lo à apreciação dos seus orientadores. Alguns trechos foram “vazados”, quebrando o sigilo da missão. Ocioso perguntar como ocorreram esses vazamentos. Tudo vaza, desde tubulações de água até os segredos de Polichinelo. Como diz um sucesso musical “mas tudo vaza, tudo vazará”. Eis alguns trechos. Será necessário dar o devido desconto pelo fato de tratar-se de um simples rascunho, uma vez que não há notícia da existência de uma formatação final a exemplo de um tal PAC N, eternamente inconcluso, sem contar que Lucy continuava com péssimo aproveitamento no quesito redação. Observei – as observações são de inteira responsabilidade de Lucy – que há alguns pobremas de suma relevância. Esse trecho estava rasurado sendo possível constatar que a autora tinha algumas dúvidas quanto a grafia da palavra. Assim, ela alternava as formas problemas e pobremas, para finalmente, optar por pobremas. Ética das bonecas infláveis. Foi a maneira que Lucy encontrou para designar o comportamento dos políticos que compunham uma tal base aliada. “Esses aceitavam com alegria serem inflados, tendo acesso a funções que recompensavam sua fidelidade, mesmo que não apresentassem a menor vocação, talento ou competência para desempenhar razoavelmente suas tarefas, e, em seguida, após uso, serem desinflados e colocados numa máquina de lavar, junto com algum dinheiro. Na ausência de coleta seletiva de lixo eram descartados – segundo uma expressão local colocados debaixo do tapete – e rotulados como indignos de confiança. Novas bonecas infláveis eram providenciadas, pois o Absurdistão não pode parar”. Lucy chegou a questionar seu mentor de química se não era possível encontrar um ácido aliado, que em contato com a base aliada, produzisse a conhecida reação de neutralização, resultando sal e água. “Que sal e água, Lucy, – exclamou o acadêmico – aqui resulta pão e circo”. Numa outra página, lia-se: Nanismo moral. Esse pessoal – é Lucy que está filosofando – não tem outro princípio do que não ter princípio algum. Ora estão vituperando ‘tudo isso que está aqui’, ora enaltecem tudo isso que aqui está, dependendo do lado do guiché no qual se encontram. Têm um refrão; eu fiz depois de negar veementemente o malfeito – mas vocês também fizeram. Pior que, em geral, têm razão. Possuem uma paixão incontrolável com viúvas, e a paixão parece encontrar eco, pois todos gastam generosamente o dinheiro da viúva, podendo ser até a viúva Clicquot. São eméritos marceneiros, pois todos fazem uma tal de caixa dois. Higiênicos ao extremo, costumam lavar dinheiro, já que é sabido que o contato com os germes está repleto de perigos. Fato estranho, são acometidos por uma amnésia seletiva. De algumas coisas não sabem e não se lembram, em compensação estão sempre dispostos a lembrar detalhes da vida nada louvável dos seus opositores. Possuem bochechas enormes que adquirem proporções impressionantes, à la Dizzie Gillespie toda vez que pronunciam a palavra ‘povo’. Tudo pelo PPPPPovo. Engraçado o fato de no Absurdistão, quanto mais indecente o indivíduo, maior sua probabilidade de ser eleito ou reeleito. São todos participantes do programa Minha Mercedes, minha vida. Possuem primeiras amigas, primeiras amantes, com o perdão do chiste – raramente de primeira mão. Finalmente, numa outra ficha consta: Desenvolvimento do complexo de cidade sitiada. Toda vez que emerge um escândalo, surge o bordão.: “Estão tentando nos destruir”. Não se sabe ao certo quem são esses maldosos “eles” – os amadores de destruição – mas para tranquilidade de todos vem a frase reconfortante: “mas não conseguirão”. Há um certo maniqueísmo primário, derivado da marcação dos pontos na tranca, que divide a humanidade em Nós e Eles. Naturalmente, “Eles” precisam ser aniquilados, para que nós cuidemos dessepaiz. Outro dia, disseram que alguns seres malignos associados a uma imprensa vendida estavam querendo destruir a Petroabsurdi, orgulho de todos. Quiseram até chamá-la de Petroabsurdix. Claro, acrescentam, isso não acontecerá. Há inimigos por todo lado: são aqueles que promovem tsunamis monetários, outros que não compram a produção absurdistanesa, outros que se contorcem em espasmos raivosos porque o povo vive melhor. Isso é verdade, pelo que se pode apurar, em Absurdistão não falta papel higiênico. Ausência de coluna vertebral. As anotações às quais tivemos acesso cessam nesse ponto, mas, com certeza, o trabalho de Lucy mal começou.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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