Conversa (des)afinada
“Quem domina o presente reescreve a História.” Segundo Colbert, arrecadar impostos é como depenar gansos, tentar obter o máximo com um mínimo de gritaria das aves. Quando se pensa em gansos, não há tantos problemas. Depois de míseros 12 anos o STF decidiu que houve inconstitucionalidades nas leis que alteraram o índice de correção monetária dos balanços das empresas. Então, as medidas impostas às empresas há mais de 20 anos (1989) deixam de ser válidas. Não é o caso de discutir a decisão da mais alta corte. Surge a pergunta: E agora? De imediato, nota-se que em função da decisão, aparecerão contas salgadas e a inevitável pergunta: Quem as pagará? De um lado, empresas capitalizadas tiveram, por força das imposições, hoje “promovidas” a inconstitucionais, de corrigir os balanços com índices inferiores à inflação calculada pelo IBGE. Como o saldo dessas operações resultará agora em uma despesa maior, com a consequente redução dos lucros tributados na época, é possível e é justo que diversas empresas procurem seus direitos na Justiça, com a alegação pertinente de ter recolhido IR e CSLL a maior, sem contar que a distorção, ou a correção desta se estenderia ao longo do tempo, até o advento do Plano Real que, na tentativa de desindexar ao menos parcialmente a economia, passou a ignorar a correção – até que algum revoltado, a hipótese é delirante mas não impossível, venha a questionar a constitucionalidade do Plano Real. Há o outro lado da moeda. As empresas que apresentaram o chamado saldo credor da correção monetária se verão, de repente, na situação de não ter recolhido IR e CSLL no montante devido, com a nova determinação. A menos que a União dê mostra de uma total, inesperada e improvável inapetência arrecadatória, haja cobranças, quem sabe mais um Refis. E depois de uma longa hibernação, é possível, caso o STF assim determine, que os detentores de cadernetas de poupança possam reivindicar valores, que em função de diversos planos governamentais não lhes foram creditados. Resta saber, como se operacionalizaria tal ressarcimento. A quem deverá ser apresentada a conta, caso as eminências togadas declarem insuficientes os índices aplicados na salada de Planos fracassados. A voz corrente é que a conta, se houver, deverá ser apresentada aos bancos. No entanto há objeções pertinentes. Os bancos públicos e privados não aplicaram índices menores para, a sorrelfa, e por pura perversidade, prejudicar pequenos, médios e grandes poupadores. Cumpriram leis e determinações cuja constitucionalidade passa a ser rediscutida. Vale lembrar que o mesmo índice que prejudicou os poupadores beneficiou os mutuários de determinados planos de aquisição da casa própria pelo Sistema Financeiro de Habitação. Proprietários de imóveis já quitados poderão, se ainda em vida, se ver ante novas cobranças, ou isso dará origem a uma nova versão do FCVS, potencial esqueleto para os armários da União? Isso sem contar que muitos desses mutuários na tentativa de recuperar perdas na caderneta, poderão ter a surpresa de descobrir que, na realidade estão devendo. É fácil imaginar a confusão. Fulano de Tal possuía uma caderneta de poupança nos bancos A e B e financiamento no banco C. Haja levantamentos. Continuando no terreno das hipóteses, já que nada foi – ainda – decidido, a conta teria grandes chances de ser apresentada ao mandante das operações, ou seja, o Governo. No caso dos bancos públicos isso parece inevitável, já que, para honrar a conta, haveria a necessidade de capitalizá-los, com injeções de dinheiro do nosso incansável Tesouro – leia-se de todos nós. Aos bancos privados restará a alternativa de encaminhar a conta, por exemplo, ao BC, cujas determinações foram seguidas, naqueles dias de inflação destrambelhada. Afirmar que as instituições financeiras ganharam com essa correção incorreta merece uma reflexão, já que os depósitos em caderneta serviram para o financiamento habitacional, cujas correções de uma forma ou de outra seguiram a lei. Ganhos de um lado perdas do outro. As consequências das decisões do STF são de impossível quantificação e a operacionalização possui aspectos políticos de inimaginável complexidade. A não ser que se procure um bode expiatório para a confusão. Diz um provérbio da região de Provence: “Quando as cabras dão leite, não é preciso procurar bodes... expiatórios”. O problema se agrava quando se procura substituir as cabras por pedras na tentativa de se extrair leite.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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