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COLUNISTA
Alexandru Solomon
15/11/2013 - 09h00
Odeio peixe
 
 

Era um sujeito muito complicado. Somente poderiam entendê-lo aqueles que se dedicassem à interpretação das inúmeras notas de rodapé que o acompanhavam, ou então Rosa. Rosa soube decifrá-lo antes do namoro sem percalços e, aos poucos, foi se tornando imbatível nesse quesito. O namoro fora apenas o ponto de partida de uma trajetória sem maiores oscilações. Houve uma ou outra briguinha, como é natural – quem não briga definitivamente hoje em dia? No entanto, não houve conflito de proporções épicas, desses de rasgar cartas, quebrar pratos ou soltar torpedos verbais envenenados por causa de olhares trocados à sorrelfa. Mesmo os inflamados ‘nunca mais’ não mereciam ser levados a sério. Meras chuvas passageiras. Uma ou outra trovoada, para, logo depois, surgir o arco-íris da reconciliação. Nem poderia ter sido de outra forma. L. fora o escolhido da família dela e vice-versa. Todo e qualquer conflito se esvaziava, uma vez que de ambos os lados havia bombeiros, dispostos a sufocar possíveis incêndios jogando água, não gasolina de alta octanagem. Teriam de casar e assim foi. Estava escrito nas estrelas, ou talvez apenas em alguns contratos, que sacramentavam os negócios entre ambas as famílias. Não se tratou de juntar fortunas colossais, mas, para os patriarcas de ambos os lados, aquilo parecia sensato. Dizer que encorajaram, seria muito pouco. Já que os jovens gostavam um do outro, por que não? Foi um pouco como unir o útil ao agradável.

Pelo lado do agradável, nada a dizer. Pelo do útil, muito menos. L. foi rapidamente alçado a candidato à presidência da empresa resultante da união entre as famílias. Méritos não lhe faltavam. Nesse ponto, as famosas notas de rodapé tornam-se necessárias. L. era inteligente, perspicaz, oportunista, competente, mas, à primeira vista, absolutamente insuportável. Conseguia tornar-se detestável, em tempo recorde, antes de, infalivelmente, se tornar amigo de alguém. Essa reviravolta na percepção ocorria, ao fim e ao cabo, por prevalecerem as virtudes. Bastava entender que a aparente agressividade ocultava uma alta dose de timidez em revelar uma alma generosa, associada a uma voraz carência afetiva, para que fossem concedidos os devidos descontos às suas frases rascantes. Ao assumir a almejada presidência, conseguiu se tornar unanimemente aceitável, ou quase. Assim na empresa como no lar, parecia ser a sina.

Rosa teve que, em nome do amor – gostava dele e muito – abdicar progressivamente de tudo que pudesse turvar a harmonia do casal. L. parecia partir do princípio que tudo lhe era devido. Recebia com naturalidade os sacrifícios, a eles correspondendo com doses crescentes de afeto. Em momento algum, aparentava a mais remota surpresa ante qualquer gênero de oferenda.

Alguém pronunciou a palavra egoísta? Se o fez, acertou, ao menos em parte, o diagnóstico. Por que só em parte? Bem, uma conclusão apressada bem que poderia ser essa, mas tudo na vida é muito mais complicado. Havia, para desnortear os apressados, a infinita indulgência perante as falhas de L., prática adotada pelos cônjuges. Pelo visto, ambos gostavam, quase que por igual de L. Quanto ao egoísmo, o que diferenciava L. do comum dos mortais, era o fato de não fazer nenhum segredo a respeito.

E, de forma bem previsível, Rosa começou a fazer concessões.

Primeiro, foi a aceitação dos horários flexíveis de volta a domicílio do herói. Não que L. fosse amigo das farras, mas ele cultivava seus amigos, um joguinho de tênis, uma rodada de pôquer, uma horinha de malhação, adorava reuniões de trabalho em horários normalmente dedicados à vida familiar. Não eram álibis, encobrindo alguns deslizes. Se o horário do jantar fosse sofrer um pouco ou muito, paciência. Se a programação dos finais de semana devesse ser alterada, paciência. Infelizmente, mesmo para L, o dia tinha apenas 24 horas. Depois, houve por parte dela, a percepção de não haver sentido em insistir numa atividade profissional, já que deveria estar sempre pronta para acolher a volta do guerreiro cansado, porém, cem por cento fieL. De renúncia em renúncia, Rosa se tornou uma perfeita dona de casa com curso de pós-graduação em sociologia, uma amiga dedicada aos amigos de L, um planeta sem luz própria.

Falar num ’L-centrismo’ não teria sido um exagero. Rosa gravitava em torno da fonte de amor, carinho e recursos materiais. Para ela não havia dúvida quanto ao fato de ser a prudência a causa da ruína da indústria de porcelana. E a solidez do casamento, sendo infinitamente superior à da porcelana, tudo caminhava às 999 maravilhas, para evitarmos o exagero descabido de falar em mil prodígios.

A tal ponto chegou essa forma de enxergar tudo sob o mesmo prisma – o dele, naturalmente – que, lentamente, a personalidade dela começou a se diluir em algo bastante vago. Com alguma indulgência, o solvente poderia receber o rótulo de vontade comum.

O processo, que para alguns mereceria o nome de ‘pigmalionização’ da personalidade da esposa amante, foi graduaL. Sem ser propriamente um britador de caráter, L. passou a dar palpites definitivos em tudo, desde qual a escola das crianças, passando pelo que Rosa vestiria em tal reunião, à qual achava – e se achava, melhor que assim fosse – que Rosa deveria ir, culminando com o que Rosa deveria escolher num restaurante. Não era tirania, procurava tranqüilizar-se ela. L. pensava saber melhor, e sempre, quais os desejos dela. Tudo era feito com tamanha gentileza e com o desejo de que Rosa fosse poupada de qualquer preocupação – os problemas eram o departamento de L. – que, por alguns anos, parecia que o segredo da felicidade fora por eles desvendado. Afinal se ele achava que Cointreau era melhor para Rosa que Poire, qual o drama? Qual o problema se L. sugeria, sempre discretamente, qual a hora de interromper uma gargalhada, de falar mais alto ou mais baixo, numa roda de amigos, de externar preferências estéticas?

No sistema planetário fechado, no qual, vale insistir, jamais fora avistada a passagem de qualquer cometa, eis que, sorrateiramente, um sentimento de rebeldia passou a se insinuar. Pensando bem, poder escolher a cor de batom, a altura do salto da sandália, a programação das férias, não representam marcos da independência da mulher moderna. Jogar fora um diploma, para se tornar motorista de filhos, pode até ter um suporte lógico, enquanto os filhos forem pequenos, mas acaba se tornando um passaporte para o divã do psicanalista a partir do momento em que os serviços deixarem de ser requisitados. Aos poucos algumas verdades, admitidas sem esforço, passaram a ser objeto de reflexão. E como sobrava tempo agora! Tempo para pensar em contestar. Ainda por cima, as amigas vinham com aquela conversa de que só se vive uma vez e que o fruto proibido não era de se jogar fora. Pelo contrário, asseveravam com convicção, ser um absurdo decretar não beber de determinada água, sem dela ter provado um gole que fosse. Com a obstinação de quem já está vários galões à frente nessa degustação, elas insistiam e argumentavam. O psicanalista já vinha martelando havia alguns meses que o importante era sentir-se feliz. As notas de rodapé que permitiam interpretar o comportamento de L. tornaram-se por algum tempo mais apagadas. Tantas insistências em embalagens diversas a atormentaram, que, no fim, Rosa teve uma aventura, com sabor de capitulação. Foi algo rápido e totalmente insatisfatório, ocorrido no meio de uma indiscutível queda de resistência. O fracasso da aventura foi recebido como um sinaL. Rosa decidiu guardar para si as conclusões e encerrar a busca da felicidade através de intermediários pouco credenciados.

Justo na noite do rompimento definitivo com o inoportuno cometa, L. propôs sair com alguns amigos. Acabava de ser inaugurado um novo restaurante, cujo chef preparava pratos a serem saboreados de joelhos, entoando hinos de louvor à sua inigualável maestria.

Chegando lá, enquanto a maître recitava a lista de delícias, L. já havia escolhido para ambos, como de costume.

– Para a senhora, a truta com amêndoas e, para mim, o cordeiro a grega, não, talvez eu peça o badejo... quando, para surpresa de todos os comensais, Rosa declarou, com inabalável firmeza:

– Detesto peixe.

(*) Crônica do livro “Sessão da Tarde”, Ed. Edicon.


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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