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COLUNISTA
Alexandru Solomon
03/11/2013 - 06h43
A desforra
 
 

Regina não costumava ser xereta, mas naquela manhã de sábado, por alguma razão que não saberia explicar, premonição, com certeza, agiu de forma diferente. Quando o telefone tocou, Jorge ainda estava na cama – aos sábados, não havia força no mundo que o tirasse de lá antes das dez horas –, enquanto ela procurava desesperadamente, na cozinha, um saquinho de chá japonês. Tinha certeza de que o vira pela última vez no pequeno armário em cima da pia, mas às vezes a empregada mexia no armário e então era aquela calamidade. As coisas desapareciam, tornando a aparecer nos lugares mais inesperados.
Um toque, dois toques, três toques...
Dirigiu-se à extensão da cozinha. Jorge já atendera. Ao invés de recolocar o fone no gancho, no entanto, impelida talvez pelo tão louvado sexto sentido, resolveu escutar. Tapou o bocal com a mão e prestou atenção.
– Oi, velho, tudo bem contigo? A Regina tá bem?
– Tudo bem, cara. E em casa?
– Graças a Deus. Tirando meu time, que virou saco de pancadas, não tenho motivo de queixa.
– É mesmo, a alegria de todos. De todos os outros, claro. Então, Serjão, missão cumprida?
– Alguma vez decepcionei você?
– Não. Só que nunca lhe pedi algo assim.
– Regina tá desconfiando?
‘Caramba’, pensou Regina.
– Não. Acha que diria alguma coisa para ela?
– Sei lá. Você é sempre imprevisível. Às vezes acho que você é totalmente incapaz de qualquer dissimulação.
– Desta vez, será preciso. Concorda? Já hesitei o bastante, mas tomei minha decisão. Eu quero e ponto.
– Nossa, agora senti firmeza. Uma vez que se decidiu, tem de ir em frente. Depois, administrará as conseqüências...
– Então como faremos?
– Está só?
– Não, Rê está em casa. Se, de repente, eu mudar de assunto, é que não dá para falar.
– Pôxa até parece que você virou mestre na arte de disfarçar.
– Sem gozações, tá?
– Tá. Mesmo assim, acho você muito complicado. Parece que está com medo. Ninguém vai comer você. Sua vida não vai mudar, mesmo que passe por um aperto. Tudo bem, entendo que não tem prática nisso... Falo como se eu tivesse... Apenas sei lidar sem esse estresse todo.
– Nem vem com essa. Tem mais prática que eu. Já fez isso. Concorda?
– Concordo. Também, foi só uma vez no ano passado.
– Vai se fazer de rogado? Fale logo. O que deu lá?
– Estive lá. Conversei um bocado. Gastei saliva mesmo. Só que esse pessoal metido a grã-fino é duro na queda. As mocinhas parecem ter decorado seus papéis. Aquele lero padrão para seduzir incauto. Sabe como é? Aquela figurinha com a qual você conversou, então, nem lhe digo.
– Eu bem que tentei, mas vi que ia ser difícil. Nunca vi mulher mais inflexível. Por isso pedi sua ajuda. Eu não tenho jeito para essas coisas. Tem certeza de que falou com a mesma?
– Claro. Pedi que chamassem a Luísa. Até parecia que eu era de casa.
– Deixe de detalhes. Fico nervoso.
– Tadinho.
– É que de vez em quando você começa se perder em pormenores e não dá mais para lembrar qual era o assunto. Verdade, pode parar com essa risada idiota. Nunca estive lá antes e não quis mostrar entusiasmo, porque, aí sim, ia me ferrar. E também não tenho tempo. Não consigo sumir, sem dar explicações. Anteontem tive que inventar desculpas e sou péssimo para mentir. Aí peço seu apoio e em vez de ajudar, fica dando essa de roda-presa. É tão difícil ir direto ao ponto?
– Pronto. Abolidos os detalhes. Saiba que não estou tirando o corpo fora. Só acho que uma hora qualquer, você, meu caro, vai ter de mostrar a cara. Ou na hora H vai solicitar meus préstimos?
– É capaz, sim. Você tem muito mais prática nisso.
– Tá bem. Como preferir.
Regina não sabia mais o que fazer. O fone parecia grudado na sua mão suada. Não dava para desligar, pois Jorge ouviria. Já ouvira mais do que precisava. Quase cinco anos de casada... Ao menos o canalha confessava não ter prática. E o Sérgio? Uma vez no ano passado. Com aquele ar de santo. Ah, essas más companhias. Coitada da Dorinha.
– Serjão, você não vai abrir o bico.
– Talvez conte para a Dorinha. Eu conto tudo para ela.
– Acha que ela vai...
– De jeito nenhum. Isso eu garanto.
– Quer, assim mesmo, fazer o favor de passar um esparadrapo nessa boca?
– Meu, acha que ela vai falar com a Rê?
– Não quero correr esse risco. Nunca se sabe.
– Tá. Olha, acho que quem não vai conseguir ficar calado é você.
– Só se eu for falar durante o sono.
– Escute, que tal hoje à tarde?
– De jeito nenhum. Meus sogros vão dar uma passada em casa.
– Então quer que eu vá de novo e acertamos para você aparecer amanhã à tarde. ‘Comigo ou sem migo’?
– Decidi. Irei sozinho. Ou melhor, você virá me apanhar aqui, contamos qualquer coisa para a Rê e, aí, pode me largar no antro. De qualquer maneira, terei de ver a mão da Luísa.
– Detalhista você. Ligadão nas mãos..
– É melhor assim.
– Ciao.
Regina estava tremendo, indignada. Não aceitava essa idéia de ser passada para trás. O que poderia fazer? Ele queria ver a mão da outra. Que tal se fosse a mão dela na cara. Bem que ele merecia.
A tarde, durante a visita dos seus pais, Regina já conseguira recuperar a calma. Procurou espantar o desânimo. Ficaram relembrando histórias, contaram fofocas. Ao se despedir, seu Alfredo comentou:
– Domingo que vem vocês completam cinco anos de casados. Não faltou o achado filosófico: ’O tempo voa e a vida tem que ser aproveitada’... Foi o suficiente para que o rosto de Regina assumisse sucessivamente todas as cores do arco-íris. Ninguém estava prestando muita atenção, de modo que a pequena tempestade cromática passou totalmente despercebida.
No dia seguinte, Jorge começou trair uma certa agitação. Regina o estava observando e até achou divertido o embaraço do marido. Só para atrapalhá-lo um pouco mais, propôs que fossem ao cinema, para ver como ele iria reagir e com uma luzinha de esperança de fazê-lo desistir da escapada tão meticulosamente planejada com o outro sacana.
Jorge se confundiu todo, alegou um compromisso com o amigo que logo viria buscá-lo e, diante disso, reprimindo a duras penas umas lágrimas rebeldes, Regina declarou:
– Tudo bem então, fica para uma outra vez. Vamos fazer o seguinte. Você sai com o Serjão e eu vou sozinha ao cinema.
– Não vai ficar chateada?
– Imagine. De forma nenhuma. – Até ficou espantada com a sua facilidade de fingir.
Nisso, Sérgio chegou, alegre como sempre. Fez alguns elogios à Regina. Em vez de estrangulá-lo, como de fato tinha vontade, ela foi de uma gentileza extrema. Até desejou boa diversão aos ‘meninos’ e que tivessem juízo. Depois que os dois saíram, Regina se atirou sobre a cama, esmurrando o travesseiro. Essa ‘chifrada anunciada’ a deixava fora de si. Passada meia hora, já mais calma, decidiu ir ao ‘xópin’, assistir a um filme. Precisava ficar sem pensar, para depois, pensar melhor. Faltava meia hora para o início da sessão. Tempo suficiente para tomar sorvete. Sentado numa mesa ao lado, um senhor maduro a estava olhando com insistência. Ela virou a cabeça. Quando olhou novamente, o outro a estava fitando com um sorriso. Regina passou a examinar atentamente o cardápio da lanchonete, com a sensação de ser examinada dos pés à cabeça. Os olhares se cruzaram mais uma vez. Ele sorriu.
Afinal de contas, pensou Regina, talvez fosse a hora de empatar o jogo. Pagar na mesma moeda. Afugentou o pensamento com indignação, mas meia hora de espera é um tempo excessivamente longo para afastar esse gênero de idéias. Minutos depois, estavam sentados à mesma mesa, conversando como velhos conhecidos. Estava decidida. Pagaria nessa moeda e seria no mesmo dia. Depois veria.
Algumas horas depois, ao se separarem, ele quis marcar um novo encontro no domingo seguinte. Regina lembrou-se a tempo de que no outro domingo estaria comemorando os tais cinco anos. Iriam se encontrar outro dia. Quando? Bem, ela avisaria e ficou com o número de telefone dele, bem escondido no fundo da bolsa. Na verdade, não tinha a menor vontade de repetir a dose, mas guardou assim mesmo o número. Quem sabe, se houvesse necessidade de se vingar novamente, é sumamente prático ter como contatar o instrumento da vingança. ‘Nossa, será que sou eu mesmo, agindo assim?’
Ao voltar para casa, Jorge a estava esperando sorridente.
– Sem-vergonha, sua punição veio mais rápido do que possa imaginar, pensou Regina.
– Querida, começou Jorge.
– Sim, diga. Foi legal lá com o Sérgio?
– Pois é, é sobre isso mesmo que ia lhe falar.
– Fale querido, quem sabe eu tenha algo para lhe dizer também.
– Eu não agüento guardar um segredo preciso logo lhe dizer...
– Faz muito bem. – É agora canalha. Regina estava quase fora de si. Mas ela tinha munição para responder à altura.
– Tudo bem. Vou tomar um drinque antes.
‘Covarde, quer confessar e falta coragem’ pensou Regina. Mas Jorge parecia tão animado, tão risonho que ela não conseguia entender. Depois do acontecido naquela tarde, ela não se sentia muito à vontade. Ele parecia uma flor.
– Realmente, não consigo esconder nada de você.
De repente ela sentiu uma onda de ternura invadindo seu ser. Se ele confessasse, ela iria esbravejar, e lhe perdoaria, ah, perdoaria sim, desde que ele confessasse tudo, lá, naquele instante. Contar os detalhes da tarde dela, nem pensar. Se ele confessasse ela o pouparia dos detalhes da vingança.
– Fale, querido... Esse ‘querido’ tinha uma entonação estranha que só ela mesma poderia entender.
– Não vou mesmo agüentar até domingo que vem.
‘Só faltava me contar no dia do aniversário’. Ela voltou a detestá-lo, por essa incrível falta de tato
– Comprei um presente para você.
‘O que dá ficar com a consciência pesada’ – Regina sentia-se cada vez mais leve, sabendo que teria a última palavra. É bom saber que não se é passado para trás. Aquela fisionomia radiante do Jorge a desarmava. Teve que admitir, mesmo que a contragosto, que gostava mesmo dele.
– Fale logo, Jorgito.
– Querida...
– Diga...
– Olha, comprei para você essa aliança. – aí continuou falando rapidamente como se fosse locutor de futebol. Regina ouvia atônita – Nem imagina a mão-de-obra. Não tinha todo o dinheiro e não queria pagar parcelado. Aí, depois que escolhi e pechinchei, fiquei com vergonha de pechinchar mais, mandei o Serjão negociar na loja. Sabe como ele é cara-de-pau. Ele tinha feito uma compra lá o ano passado, já conhecia a gerente, foi lá e arrancou mais um pouco. Mas, eu precisava ter certeza de que estaria comprando a tamanho certo. Sei lá eu o que era tamanho 14 ou 15. Aí encontrei uma vendedora, cuja mão me pareceu igual à sua. Ela teve que experimentar, discutimos e concluímos que devia ser 14 mesmo. Se não for, você poderá ir lá e eles ajustam. Taí. Eu não iria conseguir deixar o presente no armário durante uma semana. Veja e diga se gostou.
Regina não conseguia acreditar. Colocou a aliança no dedo. Experimentou uma espécie de tremor, começou chorar, pediu um segundinho para ir ao banheiro, tempo necessário para jogar no vaso um número de telefone.

(*) Crônica do livro “Sessão da Tarde”, Ed. Edicon.


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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