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COLUNISTA
Alexandru Solomon
15/09/2013 - 10h00
Anestesia ética
 
 
 
Divulgação 
  Capa do livro de Alexandru Solomon “A luta continua”, Ed. Letraviva.

Todos os homens são bons.” (um canibal)

Caramba, dirão, mais uma? Talvez o veio das variações sobre o mesmo tema não tenha se esgotado.

Na teoria, a prática é outra, ensina o bom Joelmir, mas não podemos deixar de lado uma verdade: A teoria é a consolidação da prática dos mestres. “Com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante”, filosofava Machado de Assis. O ensinamento mantém sua validade.

Parto de uma hipótese algo ousada e que poderá ser contestada por qualquer observador, por mais distraído que seja, de nossa cena – chamemo-la de política. De acordo com essa ousadia teórica, todos os seres são fundamentalmente bons. Ou seja, quando pela primeira vez aboletam-se no poder, através dos votos ou mediante qualquer outro atalho constitucional: suplência, indicação, nomeação etc., chegam sem (muitos) vícios... É possível que um ou outro ascendeu ao cargo com o propósito de rápido e duradouro enriquecimento, mas prefiro alimentar a dúvida.

Aí, ocorre o fenômeno que apelidei de “anestesia do espírito ético”. Talvez haja outros nomes mais sugestivos, mas foi o que de melhor achei. Como poderia ser descrito sem fatigar o leitor?

É preciso ter em mente que, no Absurdistão, anualmente, há um notável momento de transição, quando se passa da era do silicone no Sambódromo, para a era da pedra lascada na política. A nossa despretensiosa análise cobre a tal fase II.

Vamos imaginar uma cena, que de extraordinário nada possui. A excelência recém-eleita senta, enxuga o suor, e procura saber como funciona a coisa. Descobre onde fica seu gabinete, quem são os colegas, quais os ritos mais importantes, o que é uma questão de ordem etc. Dizem-lhe que terá direito a diversas regalias. De tanto ouvir, passa a acreditar no que lhe sopram os que o circundam, munidos do argumento irretorquível: Aqui é assim. Inocente e jejuno (em ambos os sentidos que o Houaiss fornece, ou seja ingênuo e em jejum) assimila as informações como todo homo adaptabilis.

Pois já que aqui é assim, empregar filhos, filhas, netos, netas, tios, tias, sobrinhos, sobrinhas sem omitir primos, primas, genros, noras e amigos de verdade – e como surgem amigos nessa hora!  – não pode ser errado. Se, por acaso tornou-se irregular, basta trocar chumbo com colega: eu emprego os teus, você, os meus. Não se fala mais em nepotismo. É uma forma criativa de aumentar o emprego, a renda, o consumo, o PIB. Patriotismo puro. Deve ser o certo. Por instantes paira ainda uma dúvida, uma espécie de tênue lembrança dos ensinamentos recebidos na escola e, quem sabe, até em casa. A hesitação logo cede lugar a determinação, aguilhoada pela percepção do tempo precioso perdido por conta dos, agora indesculpáveis, vacilos. Ora – raciocina a excelência – ninguém foi questionado até hoje. E acrescenta para tranqüilizar-se, só aqueles que fizeram mal feito os malfeitos!

Daí, começa o inexorável processo do entorpecimento das reações virtuosas do ser supostamente impoluto ao iniciar a caminhada. Um mandato mais tarde (pode acontecer antes), na mesma função, ou passando a exercer algum cargo similar, o gosto do melado torna-se irresistível e qualquer questionamento é relegado a um plano secundário! Aconteceu o entorpecimento, a anestesia. Daí para frente, não há mais limite.

Surge a possibilidade de edificar-se um prédio, construir uma ponte, uma central elétrica, uma estrada. O senso cívico brada, para consumo externo: “É para o bem do povo que me elegeu, vamos em frente.”. E eis que a excelência passa a se definir como “lutador” – não, não se trata de pugilista, judoca, ou praticante de alguma modalidade de arte marcial. Ele luta, enfrentando demônios ocultos – elites egoístas e reacionárias, ambientalistas fanáticos, eventualmente o bom-senso que se opõe à realização da tal obra. Nada o deterá. Tudo pelo bem do povo! Se a tal obra for superfaturada e disso resultar algo em benefício da família – e há algo mais sagrado que a família? – não há mal algum, na visão do “lutador”.

Com um pouco mais de vivência, é possível que a realização física da monumental iniciativa seja dispensável. Basta receber via caixa dois, ou três o quinhão a que faz jus todo emérito lutador. Durante essa pugna exaustiva, nada mais conveniente que, além da remuneração normal, se tire algum proveito da situação, ale de anuênios, biênios, quinquênios etc. Não há dúvida possível. Se aumentar o próprio salário pode parecer inadequado, será preciso que, junto com os colegas de insana labuta, se dê um aspecto legal aos aumentos auto-concedidos. Quanto a outras misérias, passagens aéreas, auxílios-moradia, uso de celular por terceiros etc. nem vale a pena comentar. Todos assim procedem é o refrão. Santo refrão, quanta verdade conténs! Tolo seria quem se desviasse dessa agradável linha de conduta. Pecunia non olet – dinheiro não tem cheiro – já se dizia há milênios. Vespasiano teria sido o primeiro a empregar a fórmula, ao taxar a descarga de urina dos romanos na Cloaca Máxima. Nada como uma taxa! E quanto à cloaca... Há uns tolos entre as excelências, é preciso reconhecer, possivelmente em grande número, mas eles se calam. Por que se calam é a pergunta que fica aqui à guisa de exercício.

Vezes há, em que, por alguma injustiça cometida na partilha do butim, ou por despeito de algum derrotado na guerra das nomeações, a imprensa ávida por escândalos – sim, essa imprensa maldita que só levanta miseráveis picuinhas em vez de enaltecer a edificação de uma sociedade melhor, como ensina a Novlíngua – é abastecida com detalhes sobre o lado dos negócios cujo olor fere a sensibilidade dos imbecis pagadores de impostos. E, cúmulo da falta de patriotismo, essas notícias vêm a público. Em outras circunstâncias – faz parte do jogo – órgãos fiscalizadores descobrem alguns produtos da criatividade dessa casta. Em função de desentendimentos, rivalidades ou rixas políticas, mais detalhes vazam. A mancha de... óleo aumenta. O que fazer?

Uma vez descobertos, desmascarados, que seja, as excelências sofrem um choque: Primeiro a surpresa. Mas como? Então, “aquilo” não era legal? Cessa o efeito da anestesia e há uma breve tomada de consciência, para quem possui tal adereço. Diante da constatação que, de fato trata-se de um delito, será preciso reagir.

Entra em cena a ‘valsa em três tempos’.

Antes da procura de alguma desculpa, o procedimento usual consiste em negar com graus variáveis de indignação – de acordo com o talento de cada um. Negar, negar sempre, jogar culpa na imprensa, tornar a negar, mesmo diante de evidências esmagadoras. A seguir, subir à tribuna mais próxima e invocar um passado de glórias, um currículo que pela sua riqueza demonstra, à saciedade, a leviandade das infâmias levantadas por inimigos... do povo, naturalmente. A confraria – dos cidadãos mais iguais que a patuléia ignara – reage.

Suponhamos que, por alguma obra do destino e cúmulo dos azares, essa reação não sepulte as acusações. O ser anestesiado, já bem acordado, passa à etapa seguinte. “Eu não sabia, fui traído!” E eis que, de repente, não mais que de repente, constatamos que os eleitos do povo constituem um bando de seres distraídos, talvez amnésicos, incapazes de se recordar do que aconteceu ou caso guardem de tudo uma vaga lembrança, ostentam compreensível indignação e dirigem sua ira em direção aos que, sem seu conhecimento, aloprados, negligentes, relapsos ou mal intencionados mesmo – em se tratando dos “outros” vale qualquer epíteto – perpetraram atos que deixam trêmulas de indignação as excelências. Com algum atraso constatam: Tudo vale a pena se a alma não for pequena... desde que não sejamos pegos.

O infortúnio dessa brava gente pode não terminar. A voz rouca da plebe clama por justiça. Entra em cena a arma letal: “Todos procedem assim, desde tempos imemoriais”. Existe desculpa melhor? Se esse recurso não levar à absolvição automática, a filosofia ocidental perderia seus esteios.

Muitos sabem das estripulias dos outros e guardam a preciosa informação para usá-la em boa hora. Fulano conhece as proezas de beltrano, até as tem imortalizado em gravações, mas não ousa citá-las, pois sabe que o outro sabe que ele sabe que o outro sabe que ele sabe de tudo e, acuado, o outro poderá pagar em igual moeda. E essa chantagem atômica, como nos saudosos tempos da Guerra fria, paralisa de vez qualquer apelo à decência, pois todos se sabem cobertos pela prática comum da gatunagem. Será que estamos falando em hábitos ou de infelizes exceções? Os risonhos abstenham-se!

Alguém falou em rabo preso? É claro que não. Estamos falando de mamíferos superiores desprovidos de cauda. Ou, se preferirem, da gloriosa confraria dos possuidores de telhados de vidro.

Seguramente, o conceito de, pulchrum et honestum, bonito e honesto não está em alta, no momento, se bem que o problema maior não parece ser a feiúra.

Isso para não mencionar a competência, atualmente em férias.

Do livro “A luta continua”, Ed. Letraviva.


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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